Luiz Flávio
Acreditar nos sonhos e defender causas sociais. É dessa forma que muitos integrantes e descendentes de povos e comunidades tradicionais, tão discriminados e excluídos de direitos fundamentais historicamente no Brasil, vêm conseguindo alcançar a tão desejada inclusão social e galgar um lugar de destaque na sociedade. O resgate da dignidade e respeito pautam toda essa trajetória.
Vários exemplos foram conhecidos no último dia 4, quando o Colégio de Procuradores de Justiça (CPJ), em sessão solene presidida pelo Procurador-Geral de Justiça, César Mattar Jr., empossou 59 promotores de Justiça de 1ª Entrância aprovados no XIII Concurso Público de Ingresso para a Carreira no Ministério Público do Pará em cerimônia ocorrida Theatro da Paz.
O certame foi marcado pela inclusão: das 65 vagas ofertadas para os cargos de Promotor de Justiça e Promotor de Justiça Substituto em primeira entrância, 7 eram para candidatos com deficiência, 13 vagas para candidatos negros, 2 vagas para candidatos indígenas e 2 vagas para candidatos quilombolas. Ao todo foram 6.779 candidatos inscritos no concurso.
É o caso de Dereck Luan Viana de Vasconcelos, 33. Natural de Santarém, no oeste do Pará, é indígena da etnia Borari de Alter do Chão. Filho de mãe solo, sempre estudou na rede pública de ensino. Em 2023 conseguiu se formar em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). “Foi participando da minha comunidade que tive as oportunidades que me fizeram seguir meu caminho. Apesar das dificuldades, sempre fui incentivado a estudar e sou testemunha de que a Educação transforma vidas”, afirma.
A base escolar de Dereck foi a Escola Municipal Indígena Borari Antônio de Sousa Pedroso, de Alter do Chão, onde teve mestres que lhe incentivaram desde cedo. “O Grupo Vila Viva/Ponto de Cultura da Oca que abriu as portas do mundo e fez acreditar que sonhar é possível. Meu colégio estadual de ensino Médio Álvaro Adolfo da Silveira e o Pré-vestibular solidário do Colégio Dom Amando foram os responsáveis pelo ingresso no curso de Direito da UFPA”.
Ele relembra que a Promotora de Justiça Lílian Braga, hoje sua colega de trabalho foi quem, em junho de 2010 o escolheu como seu estagiário e o apresentou ao trabalho dos promotores. “Foi essa oportunidade que me fez sonhar pela primeira vez em ser Promotor de Justiça”, conta. Por conta desse sonho, ele teve que sair da sua comunidade, do seu território, para estudar e para conseguir meios financeiros para correr atrás do seu objetivo. Após o estágio, Dereck foi assessor da promotoria de 2ª entrância e servidor auxiliar de Administração do MPPA (Santarém), além de analista do Tribunal de Justiça do Estado em Altamira, onde morou 5 anos e começou a se preparar par ao concurso do MPPA.
Durante sua preparação par ao concurso de promotor, passou por dificuldades. “O principal preconceito que sofri nessa época é a sensação de que não conseguiria acessar esses a cargos de promotor, juiz ou procurador. Pensava: podemos até ser servidores efetivos ou comissionados, mas não membros, que na minha cabeça era algo inatingível…”, comenta.
Foram 4 anos de estudo e preparação até a aprovação. “Agora, como Promotor de Justiça pretendo assegurar o acesso de populações tradicionais como Indígenas, quilombolas e ribeirinhos aos seus direitos básicos, bem como lutar pelo reconhecimento e implementação das cotas afirmativas nas esferas municipal e estadual nas comarcas de atuação, além de contribuir com a atuação institucional do próprio MPPA relacionada à temática étnico-racial. “Nada sobre nós, sem Nós”, aponta.
O promotor diz que sua posse ocorrida no dia 4 passado foi um dia histórico para o Povo Borari de Alter do Chão e também para os povos indígenas do Baixo Tapajós-Arapiuns. “Fui empossado como um dos primeiros promotores de justiça indígenas nos quadros do Ministério Público do Pará. Ingressei pelas cotas afirmativas (candidatos indígenas) no concurso público mais inclusivo do Brasil”, comemora.
Dereck diz que poderia ser apenas mais um promotor de justiça indígena, mas alerta que a realidade do país é bem diferente. Ele ressalta que indígenas ocuparem seus espaços de direito há muito tempo renegados não é uma tarefa fácil.
“Representamos hoje um percentual de 3% de todos os Promotores de Justiça do Brasil. É um avanço pequeno, até pouco tempo inimaginável, mas muito significativo. Temos muito a avançar, sei que a luta será grande. Assim como foi minha jornada. Não foi uma conquista individual. Longe disso, foi um verdadeiro mutirão humano. Sou muito grato a todas as pessoas que fizeram parte desta caminhada comigo. Não conseguiria sozinho”, reconhece.
O promotor diz esperar que sua trajetória sirva de inspiração e esperança para crianças, adolescentes e jovens do Baixo Tapajós-Arapiuns “que possuem sonhos que parecem inalcançáveis”. Segundo ele “não existe segredo ou fórmula mágica, mas acreditar nos sonhos, honrar suas raízes, e participar da vida comunitária de seu território/comunidade é um bom começo”.
César Mattar Jr., Procurador Geral de Justiça do MPPA, ressalta que além das cotas legais, o órgão foi pioneiro na realização de concurso com cotas para quilombolas e para indígenas. “Nossa região exige e nós estamos dando uma resposta pioneira que vai ficar gravada na história não só da nossa instituição, mas do estado do Pará também”, frisou.
Mattar ressalta ainda que os novos promotores chegam ao MPPA dentro da política inclusiva que fortalece, desde o início, a atuação na área dos Direitos Humanos. “Nossa administração conta com 67% de mulheres e criamos o núcleo étnico-racial, que fortaleceu o processo de interiorização. Os novos promotores chegam através do mais inclusivo dos concursos já realizados pelo Ministério Público Brasileiro, como reconhecido pelo Conselho Nacional do Ministério Público”.
Remanescente de Quilombola lutou anos por vaga no MP
Karoline Bezerra Maia, 34 anos, é remanescente do Quilombo Jutaí, localizado no município maranhense de Monção. Ela se tornou a primeira promotora de justiça quilombola da história do Brasil. Caçula de 6 irmãos, foi a primeira da família a concluir uma graduação. Ela passou no concurso do Ministério Público do Pará e foi empossada como promotora, lotada no município de Senador José Porfírio, no sudeste paraense.
Ela conta que, a despeito de sua origem humilde, conseguiu alguns “privilégios” na sua vida escolar, sendo matriculada como bolsista parcial numa escola particular na capital São Luís. “Mas sempre tive que trabalhar para ajudar a custear meus estudos, já meu pai ganhava pouco e atuava como alimentador de forno de barcos que circulavam na região. Vendi mingau com a minha mãe, ajudava meu pai a vender galinhas na feira. Trabalhei também como professora particular para crianças”, relembra.
Em seguida Karoline passou no curso de Direito na Universidade Federal do Maranhão através do sistema de cotas para negros, conseguindo se formar aos 24 anos. “Estagiei nos Ministérios Públicos Estadual e Federal, além e trabalhar como advogada depois de formada. Foi quando comecei a também estudar e me preparar para fazer concursos. Estudava entre 3h e 4h da madrugada antes de ir para o escritório onde eu trabalhava”.
Chegou a ser aprovada para a Procuradoria Municipal de Manaus, mas não chegou a ser nomeada. “Continuei trabalhando e estudando por uns 3 anos. Foi quando parei de estudar. O custo de preparação para concursos é muito alto. Tinha que viajar para outros Estados e não tinha dinheiro… Muitas vezes não conseguia viajar e nem fazer as provas. Fiquei desmotivada…”, lembra.
Um pouco antes da pandemia foi agraciada com uma bolsa do Projeto Identidade, da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), que tem como prioridade promover uma maior diversidade nos quadros do Ministério Público. “A bolsa era de R$ 2,5 mil por seis meses e me animei a estudar novamente, mas logo no início da pandemia meu pai faleceu e o último pedido dele foi para que eu voltasse a estudar e cumpri o que ele me pediu”. Os pais de Karoline moravam na roça e faleceram antes da filha se formar.
Foi então que a hoje promotora mudou seu foco e entrou de cabeça na preparação para galgar o cargo de promotora. Fez concursos nos Estados do Amapá, Sergipe e Defensoria Pública de Rondônia, onde foi aprovada, mas fora das vagas disponíveis. Nesse ínterim recebeu apoio financeiro do projeto Magistratura Negra, em parceria com a Educafro, em São Luís. “Esse apoio foi fundamental para prosseguir na disputa das segundas fases dos concursos, com acompanhamento de promotores, o que não tinha antes. Me preparei muito melhor e foi aí que consegui a aprovação no MP do Pará”, conta.
A remanescente de quilombo disse que em toda sua vida acadêmica não sentiu preconceito racial, mas sim o preconceito social. “Era uma sensação ruim porque me sentia discriminada por outras pessoas por tentar as vagas pelo sistema de cotas. Parecia que eu nunca ia conseguir. Mas minha resposta a toda essa situação era manter meu foco e aumentar ainda mais meus estudos”.
Karolina passou em vários concursos públicos em outros Estados, mas optou por ser promotora no Pará “pela proximidade da cultura com os maranhenses e com o Maranhão e por ter sido muito bem acolhida aqui”. Ela diz que se puder escolher pretende atuar na área de Direitos Humanos dentro do MP, “na defesa das minorias, de pessoas com deficiência e das populações tradicionais como quilombolas e indígenas que não têm acesso as garantias constitucionais”.