“Desabilitamos sua conta.” João Vitor Ota, 16, recebeu essa mensagem no dia 23 de agosto. Assim, soube que seu perfil no Instagram, aberto quando ele tinha oito anos e com 1,4 milhão de seguidores, havia sido desativado pela Meta, empresa que controla a rede social.
Ele recebeu como justificativa que não seguia os padrões da comunidade e que, a partir dali, ninguém mais poderia ver sua conta. Todas as informações seriam “excluídas permanentemente”, sem possibilidade de recorrer.
João diz não saber por que foi banido da rede, mas suspeita que tenha a ver com um vídeo publicado no começo daquele mês pelo influenciador Felipe Bressanim Pereira, o Felca. O conteúdo viralizou com denúncias sobre adultização e sexualização de crianças e adolescentes.
O jovem se diz injustiçado porque, afinal de contas, ele se apresenta como um homem de Deus. Filho de dois pastores, João é pregador mirim. Desde criança marca presença online, de terno e topete. Posta sermões, orações e interações mais terrenas — como as famosas “publis”, que são propagandas de marcas em troca de remuneração financeira ou permuta de produtos.
“A gente tinha parceria com uma loja de terno, a King Ternos. A gente divulgava e ganhava o terno”, conta seu pai, o pastor Leoncio Ota. Faziam o mesmo com uma loja de sapatos. João fazia propaganda também de uma assessoria de negociação bancária que promete “limpar o nome” da pessoa, gerida por seu assessor.
A maioria das colaborações cessou após o jovem perder sua conta — ele até fez outra, mas até agora ainda não ultrapassou 2.500 seguidores nela.
A queda do seu perfil expôs um impasse: onde termina a pregação infantil e começa a adultização de menores de idade embalados como influenciadores gospel?
Há no meio receio de que os pregadores infantojuvenis entrem na mira da Justiça. Leoncio cita o Ministério Público do Trabalho de São Paulo, que, em agosto, dias após o vídeo viral de Felca, propôs uma ação civil pública.
A 7ª Vara do Trabalho, em decisão liminar, proibiu que Instagram e Facebook permitam a exploração de trabalho infantil artístico sem autorização judicial prévia. Em sua decisão, a juíza Juliana Petenate Salles considerou que “manter crianças e adolescentes expostos na internet para fins de lucro, sem devida avaliação das condições em que ocorre o trabalho artístico e sem autorização da Justiça, gera riscos sérios e imediatos”.
A magistrada cita riscos à saúde física e mental dos jovens, “decorrente de pressão para produzir conteúdo”, e “a exposição a ataques de ‘haters’ e prejuízos na autoestima”. Alerta ainda para o uso indevido de imagem, “já que fotos e vídeos são publicados sem qualquer cuidado legal”. As crianças estariam vulneráveis a “danos irreversíveis, já que imagens divulgadas nas redes podem ser copiadas sem limite e usadas de forma inesperada e perene”.
Mas o pastoreio, quando exercido nessa fase da vida, configura trabalho artístico? Especialistas dizem que há brecha para enquadrá-lo, por analogia, numa atividade potencialmente danosa para os direitos da criança e do adolescente.
O momento é tenso, e é melhor não arriscar, disseram à reportagem duas famílias de crianças que expõem na internet sua rotina no púlpito. Ambas preferiram não se identificar, com medo de entrar na reta judicial se o fizessem.
A derrubada mais notória de um perfil de pastor mirim precede o material de Felca. Em abril, o missionário Miguel Oliveira, 15, foi proibido de postar em redes sociais após intervenção do Conselho Tutelar, assim como também deveria se abster de viajar e pregar em igrejas.
Ele já recuperou o perfil, hoje com 1,5 milhão de seguidores. Alguns episódios ajudaram a tornar seu nome conhecido mesmo fora dos círculos evangélicos, como a gravação em que aparece rasgando um diagnóstico de leucemia e profetizando a cura de uma mulher, ou quando balbucia um inglês (“of the king, the power”; do reino, o poder) emulando o dom de línguas, atribuído ao Espírito Santo e comum no pentecostalismo. Ele diz ser profeta.
Miguel já foi chamado de “anticristo” e “meu herege favorito” nas redes sociais. “São questões que as pessoas não gostam mesmo. Tem gente que não tá falando de coisas ministeriais, tá falando do meu dente, tá falando do meu cabelo”, disse ao podcast Eu Acredito.
A torrente de insultos virtuais passou a ser acompanhada pela Promotoria da Infância e da Juventude do estado, que zela pela proteção de menores de 18 anos.
João e Miguel, os adolescentes que em algum momento tiveram seus perfis derrubados, se encontraram em Balneário Camboriú (SC), em jantar durante um evento pentecostal.
Para Vânia Morales Sierra, professora da Uerj e coordenadora do Piarj (Programa Sobre a Infância e Adolescência do Rio de Janeiro), não é um problema por si só pensar nesse grupo etário como produtor de cultura — e o púlpito faria parte desse itinerário. “Como atores sociais, são pessoas capazes de agir, que têm um ponto de vista e merecem ser ouvidas e consideradas.”
O dilema, para ela, nem é tanto o que a criança pode ou não fazer. O que mais constrange “é o fato de a criança estar sendo capturada pelo interesse monetário”. É quando a infância deixa de ser infância e vira ativo. É essa expropriação da experiência infantil “capturada pelo capitalismo”, segundo ela, que deveria nos inquietar.
Sierra assina, junto com Wania Mesquita, também da Uerj e do Piarj, um artigo sobre o fenômeno dos pregadores mirins.
Mesquita não vê solo fértil para denúncias de adultização germinarem dentro das igrejas. “Uma criança pregando não é visto por muitos como algo que deva ser repreendido, mas como algo extraordinário, considerado divino”, diz. “Um dom de Deus.”
O saldo é que pastores mirins viram prática aceita até por igrejas tradicionais, ainda que provoquem polêmica. E, salvo se virar lei ou crime, dificilmente essa engrenagem será interrompida, afirma a socióloga.
Procurada pela reportagem, a Meta diz que não comenta sobre a remoção de contas específicas. Em seus termos de serviço, o Instagram não menciona nenhum veto a pregações religiosas.
Leoncio afirma que o conteúdo do filho João “não fere a ninguém”, ao contrário de outros tantos que “fazem apologia do crime, ou falando de droga, de sexo, coisa que a gente vê bastante”.