É curioso como a trajetória das adaptações ao cinema dos livros de Thomas Harris consegue brincar com a máxima que o escritor Eduardo Galeano utilizou para pensar a História em si. “Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador”. Embora tenhamos uma separação bastante óbvia entre vilões e mocinhos nesses filmes, eles se alternam nesses papéis de caça e caçador com extrema desenvoltura. E ter um personagem como Hannibal Lecter à disposição só faz acentuar essa dicotomia, já que ele quase sempre toma para si os holofotes. Exceto em “Manhunter: caçador de assassinos”, de 1986, em que o detetive Will Graham é o protagonista de fato.
As versões estreladas por Anthony Hopkins como Hannibal são as mais conhecidas. A obra-prima “O silêncio dos inocentes”, além da sua continuação “Hannibal” e o prelúdio “Dragão Vermelho”, ambos bons filmes. No caso do primeiro, a sua aparição se resumiu a 16 minutos. Tempo suficiente para criar um ícone do cinema, que passou a ser mais explorado nos demais longas. A interpretação poderosa de Hopkins fez, inclusive, “Manhunter”, baseado no mesmo livro de “Dragão Vermelho”, cair indevidamente no esquecimento. Até por ele explorar um viés diferente e ter muita, mas muita personalidade.
Isso se deve, especialmente, à direção de Michael Mann e às características bem peculiares da sua cinematografia, como a linha tênue entre o real e o onírico, expressa por meio da mise-en-scène. Quando Will vai ao encontro de Lecktor (o nome foi mudado aqui, sem explicação), Mann os coloca frente a frente, separados pelas grades da cela e percebemos que ambos estão presos. Figurativa e literalmente. Da mesma forma, esse “espelhamento” é visto em vários outros momentos, alguns bem sutis e outros descarados, como Will falando diretamente com seu reflexo. O seu método de internalizar e se colocar no lugar do assassino também remete a essa quebra da realidade.
Chamado para voltar à ativa e ajudar a capturar um perigoso assassino antes que ele faça novas vítimas, Will reluta, mas aceita. O motivo dessa hesitação é simples: ele sabe que se entrega ao trabalho de corpo e alma. Fica no limiar do abismo. O vê de perto. É a eterna questão Nietzschiana de novo e de novo. Ao contrário do que vemos na versão mais nova, “Dragão Vermelho”, aqui em “Manhunter” o desenvolvimento do núcleo familiar de Will assume um caráter bem mais importante. A esposa e o filho são a sua verdade, puxam seus pés para o chão. O trabalho é a ilusão, onde vagueia em devaneios. Quando seus dois mundos colidem, ele se perde.
Três cenas são primordiais nesse sentido: a que faz amor com Molly, o que deveria ser algo palpável, se torna basicamente um sonho, entre lençóis, imersos numa fotografia azulada e trilha sonora quase etérea; a conversa com o filho sobre o seu trabalho, em que precisa racionalizar tudo o que viveu e vive, tendo um momento de lucidez; e quando adormece no avião com as fotografias sangrentas dos casos que investiga à mostra em seu colo, às vistas de uma garotinha que sentava ao seu lado, que se apavora e o desperta para o fato de que pesadelos são reais. Estes são momentos cruciais para mostrar o frágil equilíbrio da vida de Will.
Por outro lado, tanto o assassino, conhecido por Fada dos Dentes, quanto Lecktor, têm pouco tempo de tela. E isso não significa ausência de ameaça. Pelo contrário. O que não está na tela pode ser tão perturbador quanto se tivéssemos um banho de sangue. Aliás, em regra, jamais vemos os crimes serem cometidos. Temos um vislumbre das suas consequências e, a partir daí, tudo se torna um jogo mental. E a interpretação de Tom Noonan como o Fada dos Dentes extrai horrores da nossa imaginação, seja pelo porte físico ou pelo olhar desprovido de sentimentos. Já Hannibal Lecktor teve uma mudança providencial de nome, pois, vivido por Brian Cox, assume uma faceta bem mais cínica e mundana do que os calafrios proporcionados por Hopkins enxergando no fundo da nossa alma, posteriormente.
Por fim, William Petersen carrega o filme com um senso de responsabilidade único. O seu Will é um homem amargurado, porém obstinado, disposto a enfrentar seus traumas, revivê-los e, mais do que isso, levar sua sanidade ao limite. Assim, a forma com que, rotineiramente, o ator desvia o olhar e mantém uma entonação monótona ou discorda de tudo que seja minimamente pragmático, é brilhante. Nesse sentido, o seu clímax pode ser considerado até mesmo apoteótico, pois o recoloca em contato com um conceito de humanidade que ele precisou varrer da sua vida para dar por encerrada essa história particular de um caçador de caçadores.
Onde assistir
- “Manhunter: caçador de assassinos” está disponível para streaming no Looke, Oldflix, Darkflix e NetMovies; além de aluguel no Amazon Prime Video e Apple TV.
Fale com o colunista
- E-mail: [email protected]