Uma noite fria de julho. Todos sentados na frente da casa, só olhando o movimento, ou na praia ainda, aproveitando aqueles últimos dias das férias em Mosqueiro. Todos, menos eu e meu primo, Cesar. Ele inventou de ver um filme e eu, embora fosse tarde para uma criança estar fora da cama, fiquei por ali, já que ninguém tinha reparado mesmo. Melhor pra mim, pensei. Grande erro. O tempo passava e, cada vez mais, me afundava no sofá de tanto pavor. O ano era 1993 e durante muito tempo guardei um trauma daquele filme, “IT – A obra-prima do medo”.
Só pelo cenário que tracei acima já dava pra ver que nada de bom sairia dali. Afinal, ele é praticamente um clichê de filmes de terror. Mas, aos dez anos de idade, ainda não tinha pelo gênero o amor que conservo hoje. O Cesar só percebeu o meu estado quando deu pause no VHS para ir beber água e viu que eu fui atrás. Ele começou a rir da minha cara, obviamente, e me mandou parar de assistir. Nem tentei me fazer de gente grande. Corri da sala.
A história de Pennywise, o palhaço assassino, me perseguiu durante alguns meses. Tive pesadelos, demorava para dormir, entre outros detalhes mais embaraçosos que, claro, não vou contar… Minha mãe só faltou bater no meu primo por ter me deixado assistir ao filme. Enfim. Passado algum tempo, já em plena adolescência e vibrando a cada novo filme de terror assistido, de todas as vertentes possíveis, li numa daquelas revistas de programação da TV por assinatura que ia passar o tal do “IT”. Resolvi encarar meu trauma.
Com um olhar mais crítico, tive a noção de que o filme – que agora já sabia se tratar de uma adaptação para a televisão, em formato de minissérie, da obra de Stephen King – tinha muitos defeitos, como o ritmo irregular, a falta de profundidade nos personagens e, por vezes, soava um pouco bobo, até. Mas sabe aquela sensação? Um frio que percorre a espinha? Pois é. Tudo voltou. Terminei de assistir e a imagem do maldito palhaço ficou na minha cabeça o tempo todo, com aquela voz docemente assustadora com que atraía as crianças para a morte. Claro que a interpretação icônica de Tim Curry foi a responsável por isso. O seu trabalho de atuação, aliás, é o que me faz sugerir uma sessão a vocês, caros leitores. É uma ode ao macabro.
Quanto a mim, só consegui driblar o meu trauma após ler o livro e entrar de cabeça na história, compreendendo-a de fato: é um rito de passagem. Fiquei tão impactado que, tempos depois, eternizei a versão de Tim Curry para o palhaço assassino em uma tatuagem. Impossível a mensagem não ficar encravada em seu coração. “Vá embora e tente continuar a sorrir. Ouça um pouco de rock and roll no rádio e vá em direção a toda vida que existe com toda a coragem que você consegue reunir e toda a crença que tem. Seja verdadeiro, seja corajoso, enfrente. Todo o resto é escuridão”.
Esse trecho, na reta final da obra, dá um frio na espinha. Não por ser uma provação com risco iminente de morte, como as que o clube dos otários se acostumou a passar durante as mil páginas anteriores. Pelo contrário. Aqui, é a vida que se impõe como grande desafio. O frio na espinha é por um “medo bom”, o das escolhas, dos caminhos abertos à frente. Só que é mais do que isso: trata-se também de como lidar com a nossa bagagem, os traumas, e como isso pode refletir no nosso futuro. E é interessante perceber a visão distinta, por exemplo, da nova versão da obra.
Ora, no livro, Stephen King optou pela metáfora da perda da magia, com a morte de Pennywise, para marcar a transição da infância para a vida adulta, culminando no total esquecimento dos protagonistas sobre os eventos assustadores em Derry. Ou seja, todo aquele sofrimento é um simples fantasma do passado, algo que, com os personagens crescidos, eles não precisarão revisitar, pois já faz parte deles, foi uma experiência que ajudou a moldar quem se tornaram. Mas agora chega. Basta. “O círculo se fecha, a roda gira e isso é tudo que há”.
Para termos comparação, no filme de 2017, o diretor Andy Muschietti buscou o mesmo resultado, mas fazendo exatamente o contrário. Na carta que Stan Uris enviou a Bill Denbrough temos uma valorização da memória. A ideia é jamais esquecermos quem somos, de onde viemos. Levar isso para a próxima fase como um troféu. Dizer com orgulho que sobrevivemos. “Uma promessa que peço que façam para mim. Para cada um de nós. Um juramento. O bom de ser um otário é que não temos nada a perder. Então, sejam livres, corajosos, firmes, acreditem e jamais esqueçam. Somos otários e para sempre seremos”.
Uma resolução não invalida a outra. Ambas situações ressaltam a importância desse rito de passagem. As descobertas, as amizades, a sexualidade nascente, as inseguranças, dores, medos… Tudo faz parte do nosso arcabouço existencial. Se é bom olhar para trás de vez em quando? Talvez. Afinal, existem pessoas que “não conseguem viver uma vida normal sem ter alguns pesadelos”. Mas simplesmente seguir em frente também é uma opção aceitável, por que não?
Alcançar a maturidade é um processo pessoal e intransferível. No final, é disso que se trata “IT” e estou bastante curioso para ver como a série vindoura, “Bem-vindos à Derry”, cujo primeiro teaser foi divulgado pela HBO Max nesta semana, vai trabalhar esses aspectos. E foi justamente essa expectativa que me levou a escrever tais reminiscências, convidando vocês a compartilharem do meu trauma. Um prazer mórbido, confesso, bem ao estilo de Stephen King.
Onde assistir
- “IT – A obra-prima do medo” está disponível para streaming na Darkflix e para aluguel na Apple TV, Amazon Prime Video e Microsoft Store.
- “IT – A Coisa”: a parte 1 está disponível para streaming na HBO Max e ClaroTV, e para aluguel na Microsoft Store, Apple TV e Amazon Prime Video; a parte 2 está disponível para streaming no Amazon Prime Video e na HBO Max.
Fale com o colunista
- E-mail: [email protected]