
Quando somos apresentados a Sam, percebemos logo de cara a sua inaptidão social. A ex-namorada dá uma festa. A música está alta, sons de risos e conversas dominam o ambiente. Sam se isola, aciona seus escudos contra aquele mundo que, para ele, é hostil. Ora, ele passou por lá apenas para recuperar umas fitas que ficaram com ela, nada mais do que isso. Entra em um quarto para procurar seus pertences e lá adormece. Ao acordar, pela manhã, é como se um anjo caído tivesse dito amém. Sam é o “último homem da Terra”, agora dominada por zumbis.
Produção francesa de 2018, “A noite devorou o mundo” não traz uma abordagem exatamente inovadora sobre essas criaturas, mas é inteligente para usá-las não como um fim em si. Aqui, a cartilha de George A. Romero é seguida, e os zumbis são apenas uma alegoria, muleta para um estudo de personagem, analisando a condição humana e extraindo o terror dos nossos medos primitivos, em especial o medo da solidão. Além disso, é impressionante como o filme antecipa em dois anos algo que viveríamos com tanta intensidade durante a pandemia de Covid-19: a tentativa de manter-se são enquanto o perigo ronda lá fora.
Dessa forma, acompanhar a nova rotina de Sam, a busca dele para se adaptar e, principalmente, sobreviver aos zumbis, traz certa familiaridade. Experimentar a solidão, a incerteza quanto ao futuro e à vida que se desenhava em um “novo normal”… É um claro exemplo de como a arte pode ser ressignificada. É praticamente impossível não realizar essa leitura, não amplificar os ecos da pandemia. O personagem de Anders Danielsen Lie, assim como tantas pessoas há alguns anos, luta muito mais do que contra zumbis, mas contra as consequências de um isolamento que afeta a sanidade.
Nesse sentido, a opção do diretor Dominique Rocher por privilegiar o silêncio é acertada. Nem mesmo os zumbis grunhem. Os dias e noites são silenciosos. Se era tudo que Sam queria no início do filme, fugir do barulho exterior, agora ele tenta não ser tragado pelos próprios pensamentos. “A solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma”, já dizia Chico Buarque. Assim, Sam vai ao limite e até mesmo se arrisca. Toca bateria, atraindo as criaturas; prende uma delas no elevador e a considera um “amigo”. São decisões controversas, mas justificadas. O homem é um ser social, por mais antissocial que possa ser. Isole-o e veja a mágica acontecer.
“A noite devorou o mundo”, embora invista bastante nessa parte dramática, não economiza também nas cenas de tensão, sejam elas advindas de pesadelos ou de uma inevitável tentativa de resgate de um gatinho em meio ao caos. São momentos como esses, estrategicamente inseridos na narrativa, que a impedem de resvalar no tédio. Sim, pois é fato que se trata de um filme de repetições, que retrata uma sociedade morta, que perdeu a pressa, afinal, “os zumbis têm todo o tempo do mundo”. O grande dilema é que, ao mesmo tempo em que um descuido pode ser fatal, de que vale viver uma existência sem riscos, fechado em um universo particular? Abraçar esse terror pode ser a única saída.
Onde assistir “A noite devorou o mundo”
- “A noite devorou o mundo” está disponível para streaming no Amazon Prime Video e na Darkflix; e para compra na Apple TV.
O adeus a Cacá Diegues
- Aos 84 anos, o cineasta Cacá Diegues morreu nesta sexta-feira (14), numa perda irreparável para a cultura brasileira. Um dos fundadores do Cinema Novo, Cacá ajudou a pensar o Brasil com seus filmes, jogando luz em seus dilemas sociais e políticos. Entre suas obras, destaque para “Ganga Zumba” (Apple TV e YouTube), “Bye Bye, Brasil” (Globoplay, Prime Video e Mubi), “Chuvas de verão” (Apple TV), “Xica da Silva” (Apple TV), “Tieta do Agreste” (YouTube) e “Deus é Brasileiro” (Globoplay e Prime Video). Cacá conquistou, merecidamente, em sua carreira, sucesso comercial e de crítica.
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