TERROR

“A autópsia”: não se deve brincar com coisas mortas

O medo surge a partir de eventos inexplicáveis durante uma autópsia realizada por pai e filho legistas, em filme de 2016.

O mundano e o sobrenatural travam uma batalha de nervos em “A autópsia”. O filme do norueguês André Øvredal é tenso, claustrofóbico e provoca aquele medo clássico, oriundo do desconhecido, do mistério que se apresenta na forma do corpo de uma jovem sem causa aparente de morte. A partir da investigação de dois legistas, pai e filho, somos confrontados por fatos científicos e outros sem qualquer explicação lógica. Tudo é apenas muito, muito estranho. “As fronteiras que dividem a vida da morte são, na melhor das hipóteses, sombrias e vagas”, já dizia Edgar Allan Poe.

O cenário, o necrotério, pode ser considerado um dos principais personagens do filme. Ele não está inserido no contexto hospitalar, com aquele branco asséptico que se esperaria. Pelo contrário. O espaço é um casarão antigo, rangendo aqui e ali, com direito a cantos escuros. Isso por si só já nos coloca em alerta. Como aqueles personagens não percebem que tudo ali grita “perigo”? Mas não é bem assim. A morte é tratada com naturalidade. Ao mostrar a rotina de trabalho e a intimidade de Tommy (Brian Cox) e Austin (Emile Hirsch), a apreensão simplesmente desaparece. Em princípio, claro. Mas esse nosso conhecimento do lugar é crucial para a desconstrução do mesmo que ocorrerá mais tarde.

Há uma cena que traduz bem essa dicotomia. A namorada de Austin, em um daqueles arroubos de curiosidade mórbida (quem nunca teve um que atire a primeira pedra), pede para ver um corpo. Ele dá o aviso: “Há coisas que, uma vez vistas, não podem ser desvistas”. Afinal, lidam com a morte diariamente, estão acostumados a realizar procedimentos de necropsia e a tratar tudo profissionalmente, sem a carga fantástica que pessoas leigas podem, porventura, adicionar a este tipo de situação. É divertido ver esses opostos em ação.

Além da ambientação, outro aspecto fundamental para a nossa total imersão na história é a relação entre pai e filho. Ela é profunda. Sentimos as suas raízes, o carinho, a admiração e, sim, até mesmo uma ponta de ressentimento que um tem pelo outro. Ou seja, construímos um laço com estes personagens e passamos a torcer por eles diante do mal que se avizinha. Aliás, a interpretação de Cox e Hirsch é irrepreensível, especialmente a do veterano. Obviamente o filme perderia força não fosse dessa forma, pois são eles que basicamente ocupam todo o tempo de tela.

Mas, ora, trata-se de um filme de terror. E, como tal, uma hora o mal vai tomar forma. Assim, à medida que os segredos daquela “Jane Doe” – pseudônimo utilizado quando a identidade de uma mulher é desconhecida – vão sendo desvendados na autópsia, a trama escala em níveis bizarros. O contraste é significativo por tudo que vimos anteriormente no necrotério, cuja tecnicidade imperava. Agora não mais. O horror passa a dominar, psicologicamente e fisicamente e o espaço para elementos notórios do gênero está aberto. A noite de tempestade, o gato que perambula pelo local, os barulhos da casa, luzes que piscam, sombras nos espelhos, o elevador enguiçado e a simples presença daquela mulher de olhar vítreo e pele alva, inerte sobre a mesa. Tudo ganha um tom ameaçador, que pode ou não se revelar mortal.

Por fim, “A autópsia” é eficiente no que se propõe e trabalha muito bem os recursos narrativos do gênero. Tanto em termos de linguagem cinematográfica, com uma direção competente de Øvredal, que consegue, por meio de planos e enquadramentos que evocam uma atmosfera crescente de terror (a cena do elevador e a do banheiro são um primor), despejar tudo em um clímax extremamente satisfatório; quanto em termos de roteiro, manipulando um dos grandes clichês do cinema de horror na resolução do enigma, dando-lhe um bem-vindo ar de originalidade.

Onde assistir

  • “A autópsia” está disponível para aluguel e compra no Amazon Prime Video, Apple TV e Claro Video.

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