Grande Belém

TRADIÇÃO E RESISTÊNCIA: As lojas que estão na memória afetiva do paraense

O Mandarim, loja tradicional no comércio de Belém. Foto: Octavio Cardoso / Diário do Pará
O Mandarim, loja tradicional no comércio de Belém. Foto: Octavio Cardoso / Diário do Pará

Cintia Magno

E m letra pequena junto à logo da loja, a data inscrita de forma discreta chama a atenção para uma característica que, muitas vezes, impacta a memória afetiva de seus clientes mais antigos, a tradição de comércios que se mantêm ativos ao longo de décadas e até mesmo por mais de um século. São estabelecimentos que, não raro, despertam lembranças, mexem com o imaginário e que se confundem com a história da própria cidade.

No mesmo endereço da avenida Magalhães Barata, de frente para o Museu Paraense Emílio Goeldi, o comércio fundado ainda em 1906 continua recebendo clientes vindos dos mais diferentes cantos da cidade. Quando um de seus fundadores, Salomão Mufarrej, chegou a Belém vindo do Líbano, aquele ponto da capital paraense era tomado por vegetação, cenário muito distante da forte urbanização vista hoje.

Com toda a dificuldade enfrentada por quem imigra para outro país, foi ali que o antigo mascate fundou a Casa Salomão. “Lá no Líbano ele trabalhava na lavoura, em uma Quinta da família. Primeiro veio o seu Salomão, que trabalhava como mascate, o que hoje seria a profissão de camelô”, conta Maria Salete Moreira, uma das mais antigas funcionárias da loja. “Ele andava com aquelas malas de madeira com artigos de armarinho, miudezas que ele vendia pelas ruas de Belém”.

Casa Salomão. Loja tradicional de Belém. Foto: Octavio Cardoso / Diário do Pará

Salete conta, através da história que ouviu e leu, que depois de um período o seu Salomão retornou ao Líbano e se casou com a moça que lhe havia sido prometida, dona Zakiée Choueri Mufarrej. Juntos, eles retornaram a Belém e, anos mais tarde, iniciaram o comércio que se mantém já por 117 anos, sendo comandada pela terceira geração da família.

“O seu Pedro, irmão do seu Salomão, chegou três anos depois e foi aí que eles deram início à Casa Salomão, em 1906. Começou com uma portinha e depois a loja foi expandindo”, conta Salete. “A dona Zakiée e o seu Salomão tiveram dois casais de filhos, mas o seu Salomão acabou falecendo de malária e a dona Zakiée comandou a loja e criou os filhos. Hoje é um neto que dá continuidade à loja”.

Ainda que mudanças tenham ocorrido no comércio com o passar dos anos, incluindo a expansão do espaço físico, o local ainda guarda memórias físicas da sua própria história e da história do comércio em geral. Entre a diversidade de itens vendidos, é possível encontrar, como objetos de decoração, a antiga caixa registradora, telefones antigos, o enorme cofre de ferro e muitos outros elementos utilizados na loja ainda no seu início.

Marcando o departamento que foi o foco inicial da loja, o armarinho, as estantes e o balcão de madeira também são exemplares dos primórdios do comércio. “Quando você entra na Casa Salomão, você vê esses itens e lembra dos seus avós, dos seus tios, então, essas coisas trazem muitas lembranças também para os clientes, um saudosismo. Eles decidiram manter isso para lembrar sempre de como tudo começou, é uma homenagem ao esforço dos seus avós”, considera Salete, que acompanha a evolução da loja desde 1977, quando começou a trabalhar lá. “A Casa Salomão foi um point belenense, um home center de Belém nas décadas de 77, 80 e 90”.

Apesar de ainda criança, a dona de casa Marlúcia Coelho, 61 anos, tem boas memórias dessa época. Moradora vizinha do comércio, ela costumava frequentá-lo com a mãe e, ainda hoje, não deixa de ir até o local quando busca itens de armarinho. “Aqui tem quase tudo que a gente precisa, então eu sempre venho aqui. Com certeza é um lugar que faz parte da minha memória e da memória da cidade mesmo”.

O Mandarim

O Mandarim, loja tradicional no comércio de Belém. Foto: Octavio Cardoso / Diário do Pará

Seguindo pela larga avenida no sentido contrário ao do fluxo dos carros, outro comércio também figura na memória da cidade e de muita gente que circula por ali. Já na avenida Nazaré, O Mandarim também mantém sua história perpetuada através das gerações de seus proprietários, e também de seus clientes.

A comerciante Helena Souza recorda do período em que ela, ainda criança, ia até a loja acompanhando a mãe e o pai. Ainda hoje, já adulta, ela continua a frequentar o local. “Quando eu preciso de qualquer coisa para carnaval, coisas de armarinho, até mesmo itens para fazer um vestido, eu já sei: vou lá no Mandarim”, conta.

“Eu também tenho um comércio, então, quando falta algo no meu, eu venho aqui comprar o material para repor. Era uma loja que os meus pais vinham, então, ficou marcada pra mim”.

À medida que se vai adentrando a extensa loja, os mais variados artigos de armarinho vão se destacando. No meio do caminho, neste período do ano, não faltaram opções de fantasias, acessórios e máscaras para pular o carnaval. Mantendo uma tradição ainda da fundação da loja, iniciada em 1949, todas as fantasias são confeccionadas lá mesmo.

“Sempre funcionou como armarinho e artigos para festas. Nesses anos todos, muitos dos nossos clientes mais antigos já se foram, mas hoje já são os seus filhos e netos que vêm. Então, os clientes vão se renovando a partir das gerações”, conta Lucilena Macedo, gerente da O Mandarim e artesã. “Toda a parte de confecção e arranjos é feita pela loja, no nosso ateliê que fica em cima”.

Em meio aos preparativos para o aniversário do esposo, que será comemorado com uma festa temática, a empresária Socorro Quaresma também se lembrou da tradição da loja para ir em busca da fantasia. “É uma referência. Aqui a gente sempre encontra esse tipo de coisa. Quando eu pensei que teria que comprar a fantasia, o primeiro lugar que eu lembrei foi aqui porque é uma loja tradicional nesse tipo de produto e como eu moro aqui próximo, fica mais fácil”.

 

Panificadora foi fundada em 1966

Panificadora Umarizal, tradicional no comércio de Belém. Foto: Octavio Cardoso / Diário do Pará

A tradição também é uma marca de outro segmento do comércio em Belém, a de panificação. Na mesma esquina da travessa 14 de Março, com a rua Domingos Marreiros, há 57 anos a Panificadora Umarizal faz parte do cenário de Belém e também das tradições de muitas famílias.

“Aqui, há anos, a fila já se forma antes da abertura da casa e já é tradicionalmente um ponto de encontro entre amigos e vizinhos do bairro”, lembra a sócia-proprietária da panificadora, Alda Oliveira. “Temos muito orgulho em fazer parte da memória afetiva de inúmeros clientes, que relatam as mais lindas histórias ao nos encontrarem pessoalmente e pelas redes sociais”.

Na época em que o comércio foi fundado, em 1966, as redes sociais não existiam sequer na imaginação da população. No cenário atual, porém, a novidade faz parte das inovações necessárias e inevitáveis para que um comércio possa se manter em funcionamento ao longo de décadas, através das gerações.

Hoje, além da matriz onde tudo começou há meio século, a panificadora tem duas filiais. “E isso tudo começou de um sonho. Quando um jovem de 15 anos deixou sua família e sua vida em Portugal para ‘tentar a sorte’ no Brasil. Trabalhou em um supermercado durante o dia, conseguiu passar e cursar alguns anos do curso de Direito na faculdade, mas logo apareceu a oportunidade de assumir a Umarizal e entrou de cabeça nesse sonho juntamente com sua esposa”, lembra Alda, ao rememorar não apenas história do negócio, mas também da própria família.