Cintia Magno
A culinária amazônida é baseada na ancestralidade que mantém, na sua origem, ingredientes e formas de preparo utilizados por populações indígenas desde muito antes do processo de colonização do Brasil. Porém, com o passar dos anos e usos, a comida originalmente consumida pelas populações indígenas recebeu uma série de influências que a fizeram ser o que é hoje, incluindo a influência da cultura e da culinária africana.
Doutora em história social da Amazônia, historiadora da alimentação e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Sidiana Macêdo reforça que a culinária no Pará é uma cozinha de raízes indígenas, mas lembra que ela também sofreu inúmeras trocas dos povos que passaram pelo território amazônida e paraense. A pesquisadora aponta que o historiador e folclorista Vicente Salles – autor, dentre outros, do livro ‘O negro na formação da sociedade paraense’ – faz referência à presença de elementos da cultura africana em diferentes aspectos da sociedade local, incluindo a culinária.
“Existem influências importantes da culinária africana no Pará. Vicente Salles nos aponta que: ‘aqui também a cultura do negro se derramou no Folclore – nos usos e costumes, na alimentação e culinária, na lúdica adulta e infantil, nas crendices e superstições, nos cultos e devoções populares, na literatura oral e no artesanato(…)’”, cita a professora, ao enumerar pratos conhecidos dos paraenses que, apesar de muita gente desconhecer, possuem influência da culinária africana. “Assim, são alimentos consumidos no Pará de influência africana o Aluá, o angu, o bobó, o mungunzá, o caruru, o vatapá paraense e o uso do dendê, a moqueca”.
Prato muito apreciado em Belém, especialmente em ocasiões festivas, a maniçoba é um preparo da culinária paraense normalmente associado à influência africana, mas a pesquisadora explica que, na origem, a maniçoba tem referência indígena. Apesar disso, o principal ingrediente do preparo, a maniva, de alguma maneira guarda a memória do trânsito de influências que se deu entre o Brasil e o continente africano, considerando também o que ia daqui para lá.
“A maniçoba já era consumida por povos indígenas desde antes da colonização. Dos primeiros relatos, datado do século XVI, de Gabriel Soares de Sousa, afirmava que os indígenas comiam a ‘folha (…) cozida em tempo de necessidade, com pimenta da terra’. Povos indígenas faziam consumo da maniçoba, que era elaborada com a folha da maniva, pimentas e peixes. Depois, como comida mestiça passou a ter na sua composição o toucinho português e outros temperos, como cheiro-verde. Então, a maniçoba mestiça não somente leva carnes variadas e vários tipos de embutidos como estes devem ser refogados antes, seguindo o padrão português. Na forma tradicional dos indígenas, as carnes eram consumidas assadas e não refogadas”, explica Sidiana. “Sabe-se que existem pratos africanos que são parecidos com a maniçoba, contudo, é importante enfatizar que a mandioca é levada para a África no processo de colonização. Por isso, acredito que a maniçoba é um prato de resistência da herança indígena no Pará”.
Cafeteria da capital oferece pratos típicos do continente africano
O consumo da maniva cozida como ingrediente principal de um prato foi uma das semelhanças que chamaram a atenção do universitário Carlos Zantangni quando ele chegou a Belém. Natural de Benin, país da África ocidental, ele mora no Brasil há cinco anos, quatro na capital paraense. “Aqui, a maniçoba de vocês é cozida por sete dias. Lá a gente tem pratos com a maniva também, mas o preparo e o tempo de cozimento são diferente”, compara, ao contar que observou que a culinária paraense e as de países africanos têm muitas semelhanças, inclusive em relação aos temperos utilizados. “A culinária africana tem muita influência aqui, só que tem muita gente que não sabe disso. Eu tenho certeza que você já comeu uma comida do Benin sem saber que veio de lá”.
Além da faculdade que cursa em Belém, Carlos divide o tempo com o empreendimento iniciado por ele e que oferece pratos típicos da África ocidental, o Dankie Coffee. Não por acaso, ele conta que encontra com facilidade em Belém a maioria dos temperos usados nos pratos típicos africanos que oferece no restaurante. “Tem muitas coisas que a gente tem de parecido (entre a culinária paraense e a africana). Inclusive, todos os ingredientes que a gente usa aqui, a gente compra na Feira do Ver-o-Peso. Graças a Deus aqui em Belém tem o Ver-o-Peso que tem a maioria dos temperos que a gente usa aqui e os que não tem a gente importa a verdadeira comida para cá, como o café africano”.
Carlos conta que, no primeiro momento, o Dankie Coffee era uma cafeteria e confeitaria, mas há pouco tempo ele mudou o conceito do restaurante para cafeteria e comidas africanas, passando a oferecer pratos típicos do continente, o que despertou o interesse dos belenenses. “O que caracteriza, de verdade, a comida africana são os temperos e sabores. A gente tem o costume de colocar muitos temperos na comida, mas não é uma quantidade exagerada. É só para dar um toque verdadeiro africano”, conta. “Geralmente, todas as nossas receitas levam pimenta, mas aqui a gente serve separadamente para quem quiser experimentar sem a pimenta. Originalmente a pimenta já vai misturada com a receita. Nos países africanos a maioria das comidas são apimentadas”.
Entre os pratos destacados por Carlos está o Alloco, um dos pratos mais consumidos na África ocidental. “Ele é feito com banana da terra frita, ovo mexido e temperado com os nossos temperos e vem bacon por cima”, explica. “Fora isso, a gente tem o Jollof Rice, que é bem típico de lá, que é um arroz super saborizado, servido com uma carne de panela bem assada e com os nossos temperos também. Lá, geralmente, a gente já faz a carne com a pimenta, mas aqui a gente serve a pimenta separadamente para as pessoas que não gostam da pimenta”.
Com o café atuando neste novo conceito há pouco mais de um mês, Carlos comemora o bom movimento e agradece a aceitação dos paraenses à culinária africana. “A gente abriu há um mês e semana passada ficamos sempre cheios. Eu agradeço a todos que tomaram coragem de provar uma comida diferente aqui. Tem pessoas que não têm essa tolerância de experimentar coisas que eles não conhecem, mas a população belenense é muito acolhedora e gosta de coisas diferentes também, então, não poderia ter Estado melhor do que aqui para criar a Dankie Coffee”.