EXCLUSIVO

Quem era Flávia Cunha, vítima dos falsos profetas morta no Pará

Falsos profetas manipulam, degradam a saúde e mantém seguidora em cárcere privado até sua morte.

Quem era Flávia Cunha, vítima dos falsos profetas morta no Pará Quem era Flávia Cunha, vítima dos falsos profetas morta no Pará Quem era Flávia Cunha, vítima dos falsos profetas morta no Pará Quem era Flávia Cunha, vítima dos falsos profetas morta no Pará
Divulgação
Divulgação

Pará - Flávia Cunha Costa tinha 43 anos. Com formação em secretariado executivo, era uma mulher inteligente, meiga e generosa. Falava três idiomas (português, inglês e espanhol) e chegou a dar aulas dessas línguas. Trabalhava com gerência de projetos científicos e firmou contratos com várias universidades brasileiras. Tinha uma vida ativa, uma mente brilhante e um coração sensível.

Mas essa trajetória foi brutalmente interrompida quando Flávia conheceu uma esteticista chamada Marcelle Débora Ferreira Araújo, que também se apresentava como pastora, terapeuta e sensitiva, mas que, na prática, comandava um “ministério” marcado por manipulação, violência psicológica e cárcere privado. Sob domínio dessa falsa líder espiritual, Flávia teve sua autonomia destruída, sua saúde negligenciada e sua liberdade arrancada.

As marcas emocionais e físicas foram tantas que seu corpo não resistiu. Ela morreu no último dia 18 de junho, abandonada pela “pastora” e seu marido no Pronto Socorro Municipal do Guamá após anos de sofrimento, em condições degradantes, privada de dignidade e cuidados básicos.

A advogada Ana Paula da Silva Santos, 29, é prima de Flávia e acompanhou toda essa história de perto. Ela conta que Flávia e Marcelle Araújo se conheceram em 2014 quando a esteticista prestava serviços para a secretária.

“Elas se aproximaram e Flávia contou as angústias que sofria em sua vida. Foi quando essa mulher apresentou a ela o Ministério Torre do Poder de Deus, afirmando que era uma enviada de Deus e outros absurdos. Minha prima morava com a mãe e decidiu sair de casa para viver na casa de Marcelle, onde também vivia com o marido e com uma filha”, conta. A sede da igreja funcionava na mesma casa onde mora o casal, na rua Paulo Cícero, no bairro do Guamá.

Falsa profeta arregimenta e engana várias pessoas

Ana conta que por um período a falsa profeta conseguiu arregimentar para seu “Ministério” que funcionava dentro da sua casa, várias outras pessoas que conseguiram abrir os perceber o engodo a tempo. Mas Flávia preferiu se manter sobre a proteção de Marcele e permaneceu morando com a pastora em sua casa. “Ela vivia em condições absurdamente precárias na casa dessa mulher, dentro de um quarto onde não havia sequer banheiro. Flávia não tinha sequer água e quando precisava tinha que usar uma torneira que ficava fora da casa e ainda assim à noite para ninguém ver”, revela.

Apesar da situação Flávia continuava trabalhando em funções científicas e corporativas que possibilitavam o atividade em home office. E tudo que ganhava ia direto para as mãos de Marcelle e de seu marido Ronnyson dos Santos Alcântara que, segundo Ana Paula, tinha controle completo sobre a vida e a vida financeira da secretária.

“Ela não tinha autonomia do que ia comprar, do que ia comer ou com quem ia falar… Eles fizeram uma verdadeira lavagem cerebral na Flávia e construíram uma narrativa garantindo que ela só conseguiria ser purificada através do sofrimento e da penitência e que todas as outras pessoas eram endemoniadas e que deveriam permanecer longe”.

Casal afasta Flávia da família e amigos

Dentro dessa perspectiva Flávia se afastou completamente da família, que era odiada por ela. “Nos afastamos todos e qualquer parente que quisesse se aproximar tinha que pedir autorização para a Marcelle, o que era muito raro. Tentamos várias vezes ao longo desses anos trazer ela de volta para casa, mas sempre ocorria um barraco, um escândalo no meio da rua”.

A última tentativa ocorreu em maio quando policiais foram na cada onde Flávia e questionaram porque vivia naquelas condições e porque estava tão magra e desnutrida. “Ela mais uma vez se negou a sir de lá a garantiu que estava muito bem com a vida que levava e classificou a família como intolerantes religiosos que apenas a perseguiam e pediu para que todos a deixassem em paz…Ela era maior e não podia ser obrigada a nada. Se forçássemos a retirada dela, ela poderia nos denunciar para a polícia. Ficamos de mãos atadas!”, relembra.

À essa altura a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM) já havia aberto inquérito para apurar o caso a pedido da família. Em 18 de junho, Flávia foi levada em condições críticas ao Pronto-Socorro do Guamá, apresentada pelo casal Marcelle e Ronnyson como “vizinha”. Desnutrida e com pressão muito baixa, foi deixada sem documentos e sob cuidados médicos limitados — o casal fugiu da unidade antes do final do atendimento, após falarem com a assistência social do Pronto Socorro.

Família só soube da morte 12 dias depois

A vítima faleceu no dia seguinte, 19 de junho, vítima de desnutrição grave, conforme atestado médico. Sem a identificação, o corpo foi registrado como indigente, mas após a investigação a família conseguiu garantir um funeral digno. “Flávia faleceu dia 19 e a família só foi comunicada dia 1˚ de julho, 12 dias depois, isso porque a delegada descobriu e nos informou.

Durante todo esse tempo a Marcelle e sua família continuaram vivendo sua vida normalmente mesmo sabendo que a Flávia estava morta, inclusive com várias postagens em redes sociais falando que a Flávia estava treinando, indo ao shopping e restaurantes…”

A prisão preventiva do casal Marcelle Débora Ferreira Araújo, de 51 anos, e seu companheiro, Ronnyson dos Santos Alcântara, de 50, ocorreu na manhã da última sexta-feira, decretada pela 1ª Vara de Inquéritos Policiais de Belém, acompanhada de mandados de busca e apreensão, sob a acusação de violência psicológica, maus-tratos e exploração financeira, cujas práticas teriam resultado na morte de uma das seguidoras, identificada como Flávia Cunha Costa, de 43 anos.

A Polícia Civil assegura que a investigação continua, com possíveis outras vítimas sendo identificadas. A delegada Bruna Paolucci, titular da DEAM, faz um alerta: denúncias podem ser feitas de forma sigilosa pelo canal 181 ou via DEAM Virtual, que também oferece medidas protetivas às mulheres.

“A história não pode ser esquecida. Não é só sobre uma vítima, é sobre o perigo do abuso travestido de fé. É sobre outras vidas que ainda podem ser salvas. Por isso, pedimos justiça. Justiça para Flávia. Justiça para sua memória. Justiça para que casos como o dela não se repitam”, garante a advogada Ana Paula da Silva.