Quem nunca mandou uma mensagem de WhatsApp para o médico que atire a primeira pedra. Mas será que ela era realmente necessária? Urgente? O horário era adequado? Tinha alguma foto desagradável? Você certamente evitou áudios e não cobrou retorno, certo?
O uso do WhatsApp tem invadido a vida de muitos profissionais, às vezes de forma abusiva. Uma das classes que tem sofrido bastante com isso é a dos médicos, motivando o pediatra, sanitarista e colunista do GLOBO, Daniel Becker, a fazer um desabafo em uma recente coluna, batizada de “O novo pesadelo dos médicos”:
“O abuso tem se tornado um motivo de exaustão e mesmo de transtornos mentais para diversos profissionais – médicos em especial. Muitos passaram a trabalhar 24 horas por dia, 7 dias por semana. Ninguém suporta esse ritmo. Há muitos relatos de burnout e estresse extremos”, conta.
“As solicitações chegam às raias do absurdo, geram incredulidade e indignação. O imediatismo é espantoso. Uma pergunta sem história, detalhes ou contexto: meu filho está com tosse, o que eu faço? Ou ao contrário: um relato longo de um problema complexo, que exige obviamente uma história bem feita e exame clínico, vem com a demanda de um diagnóstico e tratamento. Longos vídeos de criança tossindo, áudios de 11 minutos esperando respostas. E se o médico demora vem a reclamação: ‘Você tem que estar disponível sempre, foi para isso que paguei sua consulta'”.
De acordo com Becker, o imediatismo e a inadequação se tornaram marcas dessa comunicação. Ele relata que os profissionais recebem pedidos de atestados em fins de semana ou de avaliação de laudos de rotina de madrugada, “com expectativa de resposta”. “Chegam sem aviso fotos de fezes, vômitos e catarro. Ou pior, fotos de partes íntimas expostas, inclusive com o rosto da criança aparecendo.”
A falta de bom senso de alguns pacientes é marcante. A endocrinologista Suzana San Juan Melo até hoje lembra de um caso que aconteceu há alguns anos, com uma pessoa que estava acompanhando num processo de emagrecimento:
– Ela me enviou uma mensagem com uma dúvida sobre se poderia comer alguma coisa na dieta. Eu estava parando o carro para pegar minha filha de 4 anos na escola. Vi que não era urgente e fui pegá-la. Quando voltamos para o carro, ela tinha escrito: “se leu, por que não respondeu?”. Fiquei chocada, atônita. Nem respondi. Algum tempo depois, ela apagou a mensagem – conta.
Mas, de acordo com a médica, a tal paciente representa uma minoria.
– Ela passou totalmente dos limites, mas a maioria é bem tranquila, acho que as pessoas estão aprendendo a lidar com isso, o que pode e o que não pode.
O psiquiatra Daniel Barros, autor de “Viver é melhor sem ter que ser o melhor” (editora Sextante), diz que desenvolveu estratégias para lidar com a procura dos pacientes.
– Deixo no meu status “vou ver na hora que der, se for urgente, ligue”. Tem uma urgência que não está só em quem manda a mensagem, mas em quem recebe – diz. – É uma situação geral, não é só com a medicina, o WhatsApp embolou a ética das comunicações. E algumas profissões são mais pautadas pela troca do que outras. A medicina trata de pessoas em situação de vulnerabilidade, que têm dúvidas. A culpa é delas, do WhatsApp, de quem atende? É uma nova dinâmica que se estabeleceu e cabe à gente criar regras.
Edson Medeiros, especialista em marketing médico que atende mais de 200 médicos no Brasil e Portugal, explica que essa não é uma queixa comum entre seus clientes porque apenas cerca de 2 a 3% dos pacientes costumam dar problema.
É claro que algumas especialidades acabam sendo mais procuradas do que outras e há unanimidade em dizer que os pediatras são os que mais recebem mensagens. Outras especialidades que têm demanda especial são os psiquiatras e os cirurgiões Mas, segundo Medeiros, essa segunda categoria geralmente lida com questões mais esperadas e, muitas vezes, até se adiantam ligando para o paciente recém-operado.
– O grande ponto é o alinhamento de expectativas, o combinado não sai caro. O ideal é dizer: a consulta sai tanto, meu atendimento é assim, estou disponível dessa forma, nesses horários, se não for importante fale com tal pessoa… Quem paga muito às vezes espera um atendimento vip, exclusivo, e não é bem assim.
De fato, se os médicos se queixam do uso abusivo, há também o outro lado da moeda: pacientes que se sentem deixados na mão quando mais precisam.
A filha da paulistana Raquel (nome fictício) tinha 5 anos quando passou por uma cirurgia de amígdala e adenoide. A família estava começando com um novo pediatra que, inclusive, recomendou a operação. A menina estava com muita dor e a mãe ficou sem saber exatamente como proceder.
– Comecei a mandar mensagens no WhatsApp e o pediatra não respondia. Minha filha com muita dor e eu sem saber a conduta. Depois, liguei para a secretária e pedi que ela falasse para ele me atender. Nem pensei em ligar para ele direto, parecia tão íntimo… Passaram muitas horas. Liguei para a secretária de novo, já nervosa. Ele acabou me ligando – conta.
Raquel demorou quase um ano para entender que esse tipo de comunicação não funcionava com esse médico. Ele nunca disse isso, mas outra mãe a alertou.
– Acho que ele tinha que ter falado isso na primeira consulta, teria sido mais fácil. Eu teria feito uma escolha. A hora que descobri, já estava envolvida, acostumada com ele. A minha filha cresceu, mas isso me faz falta até hoje. Ainda tenho conflito pela falta do zap. Não dá para tirar aquela duvidazinha. Acho que se tivesse filhos pequenos, recém-nascidos, não teria funcionado para mim. Naquela época, eu me senti muito na mão.
Isabel Chelotti fez a tal escolha. Com a primeira filha, ainda recém nascida, sentiu que não estava conseguindo a comunicação esperada com o médico.
– Ele não tinha a prontidão que eu esperava. A febre subia, ele não respondia. Sabe aquela coisa de orientação para a mãe de primeira viagem? Percebi que não tinha dado match entre o meu estilo e o estilo dele. Aí fiz a virada, escolhi outro pediatra que foi a pessoa certa, especialmente quando tive meu segundo filho.
O novo pediatra e Isabel têm ótima comunicação pelo WhatsApp, inclusive foi a ferramenta que salvou o revéillon da família em um resort há cerca de seis anos, quando o filho mais novo, com 9 meses, teve roséola:
– A febre subiu e era 27 de dezembro: ou cancelávamos a viagem ou o doutor teria que me apoiar à distância. E ele foi impecável, me ajudou muito, porque é uma doença que não é tão grave, mas precisa de um tratamento específico. Fizemos tudo por WhatsApp, de forma tranquila, sem desespero.
O Conselho Federal de Medicina não tem recebido queixas de médicos sobre o uso do WhatsApp. O conselheiro da entidade, relator da resolução de telemedicina e pediatra, Donizetti Giamberardino, entende que cada profissional deve colocar seus limites.
– A relação médico/ paciente é uma relação de confiança, estabelecida desde a primeira consulta e, se houver intenção de continuar, cria-se um pacto, nesse pacto está incluída a modalidade de relacionamento de mídia social. Você pode ter seu limite, acho que é uma questão de combinar. Pode permitir dar o telefone ou não. Ligar só para emergências, combinar que só atende no consultório, mas é claro que pode perder pacientes por isso.
Os profissionais podem também ter um assistente médico responsável pelas ligações ou uma secretária que intermedeie esse diálogo.
Para seus clientes médicos, Edson Medeiros costuma dar duas orientações:
Já para os pacientes que estão em dúvidas sobre se andam abusando, Daniel Becker fez uma lista de boas práticas.
Dicas para mensagens pelo WhatsApp
1. WhatsApp deve ser usado para dúvidas rápidas e importantes;
2. Respeite horários de descanso;
3. Nem sempre é possível dar respostas rápidas. Aguarde;
4. Não use áudio e evite vídeos;
5. Não tente resolver questões complexas por WhatsApp.
6. Dê bom dia. Passe as informações básicas do paciente, o que está acontecendo, e o tratamento já em curso;
7. Médico não pode dar atestado de saúde sem examinar o paciente;
8. Em caso de urgência, ligue. No de emergência, vá para o hospital e ligue;
9. Cuidado com imagens. Avise se for enviar fotos de áreas íntimas e cubra o máximo, em especial o rosto. Evite fotos de fezes, vômitos e catarro – em geral não é necessário.
Fonte: Daniel Becker
Texto de: Constança Tatsch (AG)