A rede de lanchonetes Habib’s fez um acordo para indenizar um cliente que denunciou ter sido vítima de racismo por uma funcionária em uma unidade na zona oeste de São Paulo, em setembro de 2024.
Em um vídeo, a mulher afirma que o jovem “tinha o 157 nas costas”, em alusão ao artigo do Código Penal que trata do crime de roubo. À época, empresa disse que funcionária foi “afastada”, mas o Habib’s não detalhou se ela foi desligada definitivamente ou voltou às atividades.
Rede fez um acordo, na esfera cível, para indenizar o cantor e artista Abrahão Costa em R$ 22 mil. O valor de R$ 20 mil é para a indenização moral e arcar com as custas processuais e R$ 2 mil referente aos honorários advocatícios, segundo consta na decisão, obtida pelo UOL. O montante foi dividido em três parcelas, e a última deverá ser paga até 9 de junho, aponta o acordo, firmado no fim de março.
Acordo determina tanto o cliente quanto a empresa mantenham as informações negociadas em segredo. O pedido de confidencialidade do acordo foi solicitado pelos advogados da empresa. À época do caso, diversos veículos jornalísticos divulgaram a denúncia do cantor.
“As partes se comprometem a não divulgar qualquer informação que seja quanto ao presente acordo, tampouco vincular vídeos em redes sociais ou qualquer outro meio midiático acerca da presente transação em razão dos dados sensíveis aqui tratados”, diz trecho da decisão, obtida pelo UOL.
Em caso de não cumprimento, o responsável deverá pagar indenização no valor de R$ 10 mil para a outra parte. O conteúdo também deverá ser removido dentro do prazo de 48 horas, segundo a decisão.
Cliente renunciou ao pedido de esclarecimento oficial e na mídia do Habib’s para fechar o acordo. O UOL procurou Abrahão e a defesa dele, representada pelo advogado Leonardo Pavão Borges, mas foi informada que eles não poderiam se manifestar em razão dos termos do documento. Procurado pela reportagem, o Grupo Habib’s disse que “não comenta casos tratados na esfera judicial”.
Interlocutores relatam que o cantor ficou triste e se sentiu “silenciado” em razão da cláusula de confidencialidade do acordo. Conforme apurou a reportagem do UOL, Abrahão é frequentemente abordado por pessoas, pessoalmente e nas redes sociais, para saber a conclusão do caso, mas ele não pode mais comentar. Pessoas próximas a ele contam que o cantor afirma que o episódio afetou o seu trabalho porque, ao buscar pelo nome na internet, aparecem diversas reportagens sobre o caso, associando-o ao episódio.
REPARAÇÃO MORAL NÃO DEVERIA VIR COM MORDAÇA, DIZ ESPECIALISTA
Cláusulas de confidencialidade em acordos cíveis são relativamente comuns, mas deve-se considerar o interesse público, explica especialista. O advogado Kevin de Sousa, do escritório Sousa & Rosa Advogados, disse ao UOL que essas cláusulas “buscam evitar exposição negativa” após o encerramento da disputa judicial, entretanto, em casos sensíveis, como denúncias de racismo, “a imposição irrestrita de sigilo pode ser questionada sob o prisma da liberdade de expressão e do interesse público”.
“Sob o ponto de vista técnico, o acordo foi formalizado conforme os ditames legais. No entanto, do ponto de vista social e simbólico, ele revela uma tensão entre a reparação privada e o silenciamento público. Quando a vítima é impedida de continuar se manifestando sobre uma violência que alega ter sofrido, perde-se a dimensão coletiva da luta contra o racismo”, ressaltou.
“A reparação moral não deveria vir acompanhada de uma mordaça. Ainda mais quando a narrativa já havia sido publicamente compartilhada. Impor o silêncio posterior soa como tentativa de apagar a memória do fato, o que, em contextos de discriminação, pode ser contraproducente para a sociedade”, disse Kevin de Sousa, advogado.
DEFESA ESTUDA PASSOS NA ESFERA CRIMINAL
Ministério Público de São Paulo se manifestou pelo arquivamento da denúncia do cantor na esfera criminal. Em resposta ao advogado do cantor, o Gecradi (Grupo Especial de Combate aos Crimes Raciais e de Intolerância), do MPSP, apontou que a conduta da funcionária, identificada como Maria Ines Santos, conforme informações presentes nos autos, “não configurava supressão de grupos minoritários ou vulneráveis, tampouco discriminação de raça”.
Caso poderia se enquadrar no artigo 145 do Código Penal -que discorre sobre os crimes de calúnia, difamação e injúria-, destacou o MP. Nesses casos é necessária a abertura de queixa-crime pelo ofendido em um prazo de até seis meses após a ocorrência.
Defesa do cantor disse ao UOL que estuda quais passos tomará na esfera criminal. E, apesar do posicionamento do MP, advogado reafirma que o entendimento é de descriminação racial, sobre o qual compete ao Ministério Público denunciar o ofensor.
Em depoimento à polícia, em março de 2025, a mulher disse não se recordar de ter falado que alguém tinha “157 nas costas”. Ainda declarou ter sofrido ofensas e ter se sentido coagida pelos clientes no dia do caso, decidindo acionar a Polícia Militar. Ela afirmou que fazia “freelancer” no estabelecimento no momento da ocorrência. A defesa de Abrahão nega qualquer coação do cantor e dos amigos contra a funcionária.
Procurado pela reportagem, o advogado de Maria Ines, Rafael Silva Santos, disse que “infelizmente o Habib’s não nos autoriza a se manifestar em nenhum dos casos [na esfera cível e criminal]”. O defensor não explicou porque a empresa não os permitia falar sobre o caso criminal. Acionada novamente pelo UOL, a rede de lanchonetes voltou a dizer “que não comenta casos tratados na esfera judicial”.
Em setembro de 2024, Abrahão denunciou ter sofrido ofensa racista por uma funcionária do Habib’s da rua Cerro Corá. O cantor e seus amigos encontraram uma esfirra estragada e informaram a atendente, que afirmou que eles teriam que pagar uma “taxa de desperdício” por não consumirem toda a comida solicitada. O UOL mostrou que o cliente não é obrigado a pagar taxa de desperdício.
Abrahão, que é negro, e um amigo gravaram o momento em que explicaram para a atendente que não pagariam a taxa. “Você falou que uma foi estragada. Então, as demais não estão”, respondeu à mulher no registro. O amigo de Abrahão, Glay Nunes, de 25 anos (que é branco), informou que a cobrança era ilegal. Então, o artista corroborou a versão dele e afirmou que poderia mostrar para a funcionária o trecho do Código de Defesa do Consumidor.
“Você tem 157 nas costas né?”, disse a atendente. Abrahão e Glay declararam que a fala da mulher era uma “falta de respeito”.
À época, defesa de Abrahão afirmou que o cliente teve dificuldades no atendimento da ocorrência. Agentes de uma base da PM teriam dito que não atenderiam o caso porque o estabelecimento não fazia parte da região em que atuavam. Depois, um dos policiais militares que compareceu ao estabelecimento teria falado que a frase não era racista e disse que não levaria a funcionária à delegacia por falta de provas do crime -apesar de ter assistido ao vídeo gravado, segundo o cantor. Abrahão, então, foi até uma delegacia, onde foi orientado a abrir um boletim de ocorrência eletrônico.
A defesa do cantor disse que entrou com uma reclamação na Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo em razão da atuação dos agentes no caso. A reportagem está em contato com a SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública de São Paulo) e aguarda posicionamento. O texto será atualizado tão logo haja manifestação.