Justiça suspende punição de policial cearense após repercussão sobre machismo na corporação
Justiça suspende punição de policial cearense após repercussão sobre machismo na corporação

Após ter sua prisão suspensa pela justiça do Ceará, a policial militar Mayara Kelly Melo Mota desabafou: “Estava me sentindo no fundo do poço”. A PM foi condenada por lavar uma viatura e mostrar a foto em redes sociais. Mayara agradeceu o apoio e incentivo dos seguidores nas redes sociais. Concursada e aprovada para ser soldado da Polícia Militar do Ceará (PMCE) Mayara Kelly transformou um episódio de punição disciplinar em símbolo de um problema antigo: o machismo arraigado no ambiente militar brasileiro. A policial foi sancionada com dois dias de prisão disciplinar — a chamada “permanência no quartel” — após publicar vídeos nas redes sociais, entre eles, um em que aparecia lavando a viatura da corporação e outro ensinando a fazer um torniquete, técnica usada para conter hemorragias.

A justificativa oficial foi o “uso indevido da imagem da corporação”. Mas, na prática, o caso expôs a discrepância entre o tratamento dado a homens e mulheres dentro das forças de segurança. Enquanto muitos policiais homens mantêm perfis públicos mostrando armas, fardas e operações, raramente enfrentam punições semelhantes.

“Eu digo até que eu estava no fundo, me sentindo no fundo do poço mesmo. Mas essas mensagens conseguiram me puxar”, desabafou Mayara, emocionada, após receber apoio massivo nas redes. A repercussão levou o caso à Justiça — que suspendeu a punição, reconhecendo o risco de “dano de difícil reparação” à militar.

Misoginia fardada

A trajetória de Mayara é mais uma peça no mosaico de um problema estrutural: a resistência das corporações militares à presença feminina em pé de igualdade. Mulheres ingressaram oficialmente na Polícia Militar apenas na década de 1980 e, desde então, enfrentam uma cultura institucional que ainda as vê como “intrusas” em um espaço historicamente masculino.

Desafios da Presença Feminina nas Corporações Militares

Em várias polícias estaduais, as praças e oficiais mulheres são minoria, representando menos de 15% do efetivo, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. E, quando ganham visibilidade, frequentemente são alvo de críticas baseadas em padrões de gênero — aparência, comportamento ou presença nas redes sociais — mais do que em sua atuação profissional.

O caso da soldado cearense escancara a dupla penalização: uma mulher que, ao tentar humanizar a farda e inspirar outras, acaba punida por “exposição indevida”, algo raramente questionado quando parte de seus colegas homens.

Avanços lentos na legislação

Apesar de a Constituição garantir igualdade de gênero entre homens e mulheres, as corporações militares permanecem regidas por regulamentos disciplinares herdados de tempos autoritários, pouco adaptados à realidade contemporânea. Muitos ainda permitem punições como prisões administrativas, uma prática abolida em outras carreiras públicas.

Nos últimos anos, projetos de lei no Congresso Nacional tentaram modernizar os códigos disciplinares das polícias militares e bombeiros, incluindo mecanismos contra assédio moral e sexual e o fim da prisão administrativa. No entanto, a maioria ainda não saiu do papel.

O Caso Mayara Kelly e a Busca por Igualdade

Enquanto isso, episódios como o de Mayara mostram como a hierarquia pode ser usada para controlar o comportamento de mulheres, mais do que para garantir a disciplina.

Mayara Kelly, além de policial, é mãe e influenciadora digital, com quase 50 mil seguidores. Seu conteúdo, segundo a defesa, tinha caráter “educativo e motivacional”, voltado a enaltecer o trabalho das mulheres na corporação. O tribunal reconheceu essa intenção e suspendeu a punição — uma rara vitória individual num sistema ainda profundamente desigual.

Agora, ela diz que vai se dedicar aos estudos para um novo concurso público. Mas seu caso permanece como um espelho do descompasso entre discurso e prática na busca por igualdade dentro das forças de segurança. Em um ambiente onde a obediência é regra e a diversidade é vista como ameaça, mulheres como Mayara seguem sendo pioneiras — e, muitas vezes, as primeiras a pagar o preço da mudança.