SÉRIE

“Chespirito” está na fronteira entre a memória e a ficção

Na série "Chespirito: Sem Querer Querendo", a realidade não é tão importante quanto nos perdermos entre risos, sonhos e nostalgia.

A série, em oito episódios, está disponível na HBO Max - Foto: Divulgação
A série, em oito episódios, está disponível na HBO Max - Foto: Divulgação

A série “Chespirito: Sem Querer Querendo” é baseada na biografia oficial de Roberto Gómez Bolaños e produzida por dois de seus filhos. Dadas essas circunstâncias, o caráter indulgente com o personagem principal é, de fato, inevitável. Até porque, “é difícil separar a ficção da invenção, a fantasia da memória. Não há uma linha separando o que você viu do que você sonhou. A imaginação ocupa o espaço da memória”, já dizia Lygia Fagundes Telles. Isso se aplica perfeitamente aqui, adicionando o fato de que todos os fãs também estão “contaminados” pela nostalgia, carinho e influência que Chaves e Chapolin tiveram em suas vidas.

É ponto pacífico que o legado de Bolaños merece todas as honras. E esses louros a série oferece de sobra. Retrata sua vida com uma poesia e inocência que o aproxima das suas criações, traça paralelos e traz curiosidades significativas. Todas as dificuldades que surgem no trabalho são superadas com criatividade, talento e, cá pra nós, boa dose de sorte e coincidências. Características que impõem ao próprio Bolaños uma aura de super-herói – e isto sequer é um subtexto; ao contrário, é mostrado literalmente na cena em que ele se vê no espelho após uma interação com a filha. Não ligamos, pois é bonito, doce e encantador.

Por outro lado, se a sua genialidade é exaltada a cada dez minutos, a série também consegue criticá-lo, tirá-lo brevemente do pedestal. Especialmente no que diz respeito à ausência afetiva dentro de casa. Aliás, neste aspecto, a esposa, Graciela, se torna uma figura central de dramaticidade e, não raro, rouba cada cena que aparece. Mesmo assim, trata-se de uma obra enviesada, com mocinhos e vilões bastante claros para o espectador, bem ao estilo de Chaves e Chapolin. Paradoxalmente, é do mergulho que dá no universo desses personagens, na construção da sua idolatria e meandros da produção, que ela tira a sua força.

É interessante acompanhar o processo de criação dos personagens, mesmo que romanceados – Foto: Divulgação

É por isso que a montagem é crucial para o resultado final. A opção por idas e vindas no tempo é acertadíssima, pois dá à jornada de Chespirito um ar de novidade. Afinal, a sua história, de modo geral, é conhecida e a linearidade só serviria para adiar o auge do sucesso – interesse primordial do público – e, principalmente, os conflitos. E por conflitos entenda-se Florinda Meza e Carlos Villagrán, os dois vilões declarados da série. Tanto que tiveram seus nomes alterados para não criar problemas legais.

Inclusive, esse é o grande ponto de ruptura, já que os produtores lançaram mão da carta “Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”. Uma grande desfaçatez, convenhamos. Assim, lidamos com um produto que é, ao mesmo tempo, ficcional e biográfico. E não há mal algum em si. Existem obras que fazem isso muito bem, como, por exemplo, “Não estou lá”, uma obra-prima que narra a trajetória de Bob Dylan como se fossem várias vidas dentro de uma só. O grande problema é que a série se vende como um documentário da vida e carreira de Bolaños, sendo que romantiza demais de um lado e vilaniza demais de outro.

Triângulo amoroso é motivo de polêmica na série – Foto: Divulgação

Os autores pesam a mão em cima dos intérpretes de Dona Florinda e Quico. A primeira, destruidora de lares, controladora e que não hesita em passar por cima de qualquer um para alcançar seus objetivos. O segundo, um arrogante mimado e intrigueiro. Não há contraponto. Por outro lado, o defeito de Bolaños é simplesmente ser ingênuo, um cara que sempre é levado a agir de maneira alheia à sua vontade e sem assumir responsabilidade. Como se o fato dele ser um gênio e lidar com a pressão inerente a isso redimisse qualquer possível falha de caráter e outras máculas.

Ou seja, “Chespirito: Sem Querer Querendo” pode até ser, como disse Florinda Meza, um “melodrama fictício que busca escândalo”. Mas, para o azar dela, é um novelão dos bons. Ao longo dos seus oito episódios, nos diverte e nos faz chorar. Conta também com um elenco estupendo, que passa longe da caricatura e nos traz uma sensação de familiaridade com os atores clássicos, o que é necessário para nos conectarmos emocionalmente com a série. É essa conexão que a faz valer a pena. Pois, no final, tudo é sobre memória, sobre legado. E se carregaram nas tintas, bem, foi sem querer querendo.

Onde assistir

  • “Chespirito: Sem Querer Querendo” está disponível para streaming na HBO Max.

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