O blues evoca memórias. Memórias acompanhadas por uma profundidade emocional por vezes dilacerante, por vezes esperançosa, tendo em vista a sua origem como expressão artística negra no período escravocrata. Ou seja, o gênero musical fortalece a conexão com o passado, criando uma experiência única de embate entre opressão e liberdade. Dicotomia essa que foi tão bem representada pela cena emblemática de “Pecadores” em que a música rompe fronteiras de tempo e espaço, e promove um verdadeiro passeio pela cultura negra. É bonito, é potente, é mágico. E é só uma pequena amostra de todo o simbolismo deste filme, que utiliza o horror como meio para compartilhar medos e anseios.
Ryan Coogler, diretor negro, está à frente de “Pecadores”. Trata-se de um projeto bastante pessoal. Lembrei-me imediatamente da clássica entrevista de Denzel Washington sobre a necessidade desse olhar específico no filme “Um limite entre nós”. Na ocasião, ele enfatizou que a vivência cultural é fundamental para contar histórias que refletem as especificidades de uma comunidade. Aqui, isso encontra um paralelo óbvio, já que ir ao encontro das entranhas da América racista e, principalmente, enfrentá-la, só é possível por meio de um discurso feito com propriedade, voltado à resistência e à ancestralidade.
Nesse sentido, a opção por se valer do misticismo/horror para lidar com questões raciais não só é totalmente válida como está no cerne do cinema de gênero. Os monstros estão ali, são reais, mas, ao mesmo tempo, funcionam como alegorias que ressaltam a identidade e a história negra. É o que defende a pesquisadora Robin Coleman, no livro “Horror Noire – A representação negra no cinema de terror”. Ela pontua aqui e ali: “O terror continua sendo um estudo sobre racismo, exotismo e neocolonialismo para as pessoas negras (…) Ao voltar a atenção para si mesmos, os negros se esforçaram para subverter tratamentos”. É o que Coogler, Michael B. Jordan e companhia fazem em “Pecadores”.
Donos da narrativa, eles fazem cinema com “C” maiúsculo, mesclando à perfeição a sua função social com entretenimento de primeira qualidade. “Pecadores” tem, sim, todo o background positivo citado acima, mas também acerta no básico. É um filme que funciona, que mexe com nossas emoções. Na trama, os gêmeos Fumaça e Fuligem voltam à sua cidade natal para recomeçar a vida. Eles pretendem construir um clube de blues para a comunidade negra tendo de lidar com os desafios da segregação racial. Inclusive, o subtexto sociopolítico está muito presente, não é preciso verbalizar. Está tudo ali: a situação de Chicago nos anos 1930, com a Lei Seca e o domínio de gângsteres, além da analogia entre a perseguição aos negros e aos irlandeses, com o componente da branquitude emergindo daí, com um clássico “O sonho do oprimido é virar opressor”. E, claro, em meio a isso, terão de lidar com uma invasão sobrenatural.
Toda a tensão é construída de maneira orgânica e gradual. Na primeira hora, através do horror real, do racismo, da dor da perda, da desconfiança, dos dilemas morais e religiosos. Mais tarde, entramos com tudo no campo do fantástico, com direito a banho de sangue e o simbolismo assumindo as rédeas da narrativa. O personagem de Miles Caton, o “pastorzinho” Sammie, neste aspecto, é o foco. Aliás, ele e sua música. A trilha sonora composta por Ludwig Göransson, como um todo, tem de certa forma vida própria. “Essa vai ser uma boa noite”, diz um dos versos da canção que introduz os dotes de Sammie. É o indicativo de que através da sua música o universo do filme se abre às possibilidades, cumprindo a profecia lançada no início de que aquela música “é tão pura que pode perfurar o véu entre a vida e a morte, o passado e o futuro”.
Além disso, o elenco poderia ganhar prêmios de conjunto extremamente afinado. Michael B. Jordan já é um titã, mas ele cresce ainda mais ao lado de Wunmi Mosaku (Annie), que mergulha na dramaticidade da personagem, defendendo-a brilhantemente de modo a destacar no olhar e gestual a força e resiliência daquela mulher. Caton, Delroy Lindo (fantástico como Delta Slim), Hailee Steinfeld (Mary) e Jack O’Connell (Remmick) também cumprem seus papéis com competência. Divertem e emocionam.
Por fim, “Pecadores” assume sua raiz fantástica também nas referências a expoentes do gênero, como “Um drink no inferno” e “O enigma do outro mundo”, por exemplo, puxando a sensualidade ardente de um e o isolamento, medo do desconhecido e paranóia de outro para o seu próprio proveito. Além de beber também da atmosfera ácida e irônica do cinema dos irmãos Coen. Ou seja, o filme de Coogler ressignifica suas influências não apenas para assustar, mas para situar “Pecadores” em um patamar de relevância que há tempos um filme de horror não alcança. Dessa forma, “dançar com o diabo” pode ser altamente recompensador.
Onde assistir
- “Pecadores” está disponível para streaming na HBO Max.
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