FANTASIA & DRAMA

“Quando éramos bruxas”, um conto poético e macabro

O filme pode ser considerado uma releitura feminista do conto “A amoreira”, dos irmãos Grimm, e conta com Björk no elenco.

O filme marcou a estreia de Nietzchka Keene como diretora e da cantora Björk como atriz - Foto: Divulgação
O filme marcou a estreia de Nietzchka Keene como diretora e da cantora Björk como atriz - Foto: Divulgação

O trabalho dos irmãos Grimm, Jacob e Wilhelm, em preservar e divulgar narrativas orais e escritas da história cultural alemã no século XIX, ganhou notoriedade com o passar do tempo a partir de versões romantizadas e adaptadas para crianças. Isso acabou escondendo o lado sombrio de muitos de seus contos, carregados de violência e crueldade, e inseridos em uma complexa teia de acontecimentos que, por meio da fábula, da fantasia, traça um recorte da época. “Quando éramos bruxas”, adaptação de “A amoreira”, segue essa linha mais próxima do original, em um filme contemplativo, poético, macabro e com extrema força imagética.

Dirigido por Nietzchka Keene, essa produção islandesa, gravada em 1986 e lançada quatro anos depois, nos transporta para o período medieval para acompanhar a saga das irmãs Margit e Katla. Elas partem em busca de refúgio após a mãe ser apedrejada e queimada na fogueira por bruxaria. Katla, a mais velha, seduz o viúvo Johan e passa a viver com ele e com o seu filho pequeno, Jonas. Contudo, o garoto não aceita a madrasta, percebe a sua real natureza e faz de tudo para afastá-la do pai. Enquanto isso, Margit tenta compreender, além dos seus poderes, o seu lugar no mundo.

Minha mãe me matou.
Meu pai me comeu.
Minha irmã Marleninha
meus ossos juntou.
Num lenço de seda os amarrou.
debaixo da amoreira os ocultou.
Piu, piu, que lindo pássaro sou!

Trecho do conto “A amoreira”, dos Irmãos Grimm

A fotografia em preto e branco é poderosa e praticamente conduz a trama. Sem ela o filme não existiria, pois é a principal responsável pelo tom pausado, pelo ritmo lento e claustrofóbico como forma de retratar a tristeza dos personagens, o luto e a melancolia. Essa característica ecoa o cinema de Ingmar Bergman, claramente uma forte influência na cinematografia escandinava – e mundial, claro. Assim, “Quando éramos bruxas” apresenta um viés existencialista que é uma constante na obra do cineasta sueco, com o filme de Keene sendo impulsionado pela obscuridade do conto em que é inspirado.

É importante entender que Katla e Margit estão unidas pelo sangue e pela herança ancestral da feitiçaria, mas não poderiam ser mais diferentes entre si. Enquanto Katla revela o peso da idade a partir de um instinto de sobrevivência aguçado, calcado no pragmatismo, nas suas certezas e na praticidade com que comanda seus atos, Margit é o exato oposto. A jovem permite-se ter dúvidas, quem sabe até renegar a bruxaria. Ela tem um dom, visões que não consegue controlar, enxergar aqueles que já se foram. Mas isso não a define. Margit quer apenas ser livre, viver em paz, longe da opressão religiosa. Embora essa seja uma tensão permanente e inevitável naquele contexto. De todo modo, ambas exercem – ou desejam exercer – o controle sobre as suas histórias. Não à toa, o filme é considerado uma releitura feminista do conto dos Grimm.

Johan e Katla, relacionamento envolto pela feitiçaria – Foto: Divulgação

Além disso, seja pela expressividade ou pela economia de gestos e impassividade diante das situações, o elenco enxuto, de somente cinco membros, é cativante, tendo nos intérpretes de Jonas e Margit seus grandes destaques. Geirlaug Sunna Þormar é uma potência. Demonstra inocência e revolta na mesma medida. E uma jovem Björk, estreando no mundo artístico, captura nossa atenção por meio da sua aparente fragilidade, que encobre uma força de vontade estupenda.

“Quando éramos bruxas”, mesmo tendo apenas 79 minutos de duração, não é palatável para todos os públicos. Em especial a quem está acostumado ao ritmo acelerado do cinema atual – hollywoodiano acima de tudo. Talvez precisasse de um melhor acabamento, é verdade. Em algumas cenas há o flerte com um experimentalismo que pode, sim, incomodar, já que fica no limiar – ultrapassando este limite por vezes – entre quebrar o ritmo e servir à proposta de simplesmente contemplar o que a vida oferece. Sejam respiros por meio de paisagens e planos abertos para contrastar com o mundo fechado da cabana em que vivem os personagens; ou elevar esse nível da angústia, expressa pela morbidez de cenas-chave, como uma aparição fantasmagórica, um animal morto ou um dedo cortado como ingrediente de um ensopado para o jantar.

A tragédia, definitivamente, mora nas sutilezas.

Onde assistir

  • “Quando éramos bruxas” está disponível para streaming na plataforma Filmicca.

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