Acreditar nas pessoas, na bondade que cada uma delas traz consigo, é muito complicado. Não deveria ser, mas é. Sempre uma ponta de dúvida é levantada quando alguém faz uma boa ação, pois ela, por si só, é inimaginável. E o motivo para tanto, geralmente, é que nós mesmos não somos capazes de agir daquela forma simples, correta e humana. É um duplo egoísmo: o de não ser altruísta e o de não acreditar que os outros sejam. “Derek”, série de Ricky Gervais, produzida em formato de falso documentário, joga isso na nossa cara. É um massacre moral, uma dura e tocante lição de vida.
Derek trabalha em um lar para idosos. Um lugar que, à primeira vista, é deprimente, uma verdadeira antessala da morte com direito a retratos melancólicos da velhice. Mas, conforme os episódios transcorrem, percebemos que esta visão, embora real na sua crueza, não abrange todos os aspectos. Sim, ali estão personagens críveis, que eu e você conhecemos, afinal, muitos já viveram de perto a dor e o sofrimento de perder lentamente uma pessoa querida. Mas extrair desse cenário bons sentimentos, além de enxergar vida, beleza, amizade e companheirismo é o que, de fato, importa.
Uma frase de Derek explica bem o que se passa pela sua cabeça. Nela, ele diz que não se importa em fazer papel de bobo se isso servir para os outros rirem. Rir faz bem. Principalmente quando se trata de proporcionar aos idosos breves momentos de alegria. Nunca se sabe quando serão os últimos. E por que ele faz isso? A explicação é de uma sensibilidade e ingenuidade comoventes: se eu faço coisas boas, me sinto bem; se faço coisas ruins, me sinto mal. Esse é o parâmetro, o resto é de uma complexidade incompreensível a ele.
Talvez o mais interessante na série seja a sua categorização. Apesar de tudo o que escrevi acima, ela é uma comédia. E das mais inteligentes, pois Ricky Gervais consegue tirar o riso do grotesco e nos guiar de situações incômodas para improváveis reflexões que terminam com um sorriso e um balançar afirmativo de cabeça. É uma comédia pautada na realidade, em que a própria existência revela a sua graça, as suas ironias, deboches e sarcasmos, resumindo todo o seu sentido entre ser bom ou não. Se há céu ou inferno, se Deus existe ou não, se há um motivo maior ou alguma missão a ser executada em nossa passagem pela Terra, nada disso importa. A questão é simples e direta: faça o bem, seja bom.
O próprio Gervais, certa vez, perguntado sobre essa mescla de gêneros na série, já que a quantidade de lágrimas, dessa vez, parecia ser maior do que as de risos, tratou de minimizar a polêmica: “O drama e a comédia se misturam como na vida. É tão curioso porque muitas pessoas, mesmo depois de terem assistido à série, me perguntam: ‘É comédia ou drama?’. E sempre respondo: ‘Bem, como é a sua vida? Sua vida é uma comédia ou um drama?’. É um pouco de ambos. Você se diverte, então algo ruim acontece. Você encara uma adversidade, então algo bom acontece. Por melhor que sua vida seja, as coisas ruins estão sempre te desafiando, são sempre uma ameaça. ‘Derek’ é sobre a forma com que você lida com isso. É sobre lidar com a vida e tirar o melhor”, afirmou.
Para finalizar, a genialidade de Ricky Gervais pode ser medida pelo o que deixei, propositadamente, por último: a concepção das características de Derek. O personagem tem uma deficiência intelectual – que nunca fica explicitada na série. Ou seja, enquanto aqueles que não possuem nenhuma “limitação” se deixam levar pela hipocrisia e tentam passar uma capa de moralidade, Derek não tem amarras sociais. Faz o que sua cabeça e coração mandam e julgam como certo. É o derradeiro soco no estômago e a certeza de que temos muito a aprender e evoluir, já que a “normalidade” parece ser tão absurda na sua falta de humanidade.
Onde assistir
- As duas temporadas de “Derek” estão disponíveis para streaming na Netflix.
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