AMOR E RESPEITO AO PRÓXIMO

No Círio de Nazaré, devoção ultrapassa as barreiras religiosas

Organizado pela Igreja Católica, o Círio ultrapassa o calendário oficial da festa e se espalha por Belém em diversos modos de celebração.

No Círio de Nazaré, devoção ultrapassa as barreiras religiosas No Círio de Nazaré, devoção ultrapassa as barreiras religiosas No Círio de Nazaré, devoção ultrapassa as barreiras religiosas No Círio de Nazaré, devoção ultrapassa as barreiras religiosas
Pai Elivaldo Santos de Oxalá.  Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.
Pai Elivaldo Santos de Oxalá. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

Organizado pela Igreja Católica, o Círio ultrapassa o calendário oficial da festa e se espalha por Belém em diversos modos de celebração. O povo, em sua autonomia, interpreta a festa mariana a partir do próprio repertório sócio-cultural e religioso, uma espécie de insubordinação simbólica aos ritos oficiais da festividade. Um exemplo disso é a participação de outras religiões nas dinâmicas das procissões. Umbandistas, Candomblecistas e Evangélicos congregam do mesmo espaço em uma demonstração de fé, comunhão e amor  ao próximo. 

A imagem de Nossa Senhora de Nazaré é um símbolo religioso carregado de múltiplos sentidos. Sendo assim, cada matriz religiosa a interpreta de acordo com a própria cosmologia, correlacionando a características similares de deuses da sua religião. Em sua origem, Maria representa uma figura materna, que, como mãe, acolhe todos os filhos sob o seu manto e os inclui em sua graça mesmo nas diferenças. Essa qualidade é o que torna possível que a celebração da Santa seja realizada por várias religiões. 

Adeptos de religiões não-católicas sempre participaram das procissões do Círio de Nazaré de forma invisibilizada. No livro “Carnaval Devoto”, o antropólogo Isidoro Alves relata que, ainda na década de 1970, um membro da Guarda de Nazaré foi expulso da organização por ser de religião de matriz africana. De acordo com a historiadora Taissa Tavernard, professora do programa de pós-graduação em educação da Universidade do Estado do Pará (UEPA), a festa devotada a Nossa Senhora ultrapassa o caráter religioso e se fixa na expressão identidade cultural e práticas sociais de um povo. 

“Em antropologia chamamos um ritual como o Círio de ‘fato social total’, pois ele engloba todos os aspectos da vida de um grupo. Ninguém passa ileso ao Círio. Os protestantes mais radicais o vivenciam fazendo críticas que já foram expostas em faixas, outdoors, protestos. Os protestantes históricos, como os luteranos, se juntam à festa num ato inter-religioso. Os membros da Assembleia de Deus, apesar de não participarem como fiéis, fazem do Círio um momento de acolhida aos irmãos penitentes, distribuindo água, café da manhã, tentando ajudar o próximo”, afirma a professora.

Desde 2012, a Assembleia de Deus Blindados no Senhor realiza o projeto “Eu+Você=Jesus – Água para quem tem sede”. A iniciativa, organizada a partir da orientação de Deus, inicia na noite de sábado, após a Trasladação, com apresentação de bandas durante toda a madrugada, a chamada vigília musical. Na manhã do segundo domingo de outubro, a igreja abre as portas em ajuda ao próximo com doação de água e café da manhã aos romeiros do Círio de Nazaré. 

Desde 2012, a Assembleia de Deus Blindados no Senhor realiza o projeto “Eu+Você=Jesus – Água para quem tem sede”.

Aproximadamente 200 voluntários de várias igrejas evangélicas da Região Metropolitana de Belém e interior do estado se organizam desde agosto para atender os romeiros. Cultos, vigílias, consagrações, propósitos de oração, jejum e seminário servem de preparação para quem participa pela primeira vez do projeto. Nesses momentos, os voluntários recebem orientações sobre como servir e acomodar as pessoas, além das dinâmicas da distribuição de água e café, principalmente nos momentos de pico da procissão.

“Não faz sentido a única igreja evangélica de Belém, situada no caminho da procissão, fechar as portas por causa do Círio. Somos uma igreja desprovida de preconceito religioso e nossa missão é propagar o amor de Deus. É uma forma de demonstrar com nossas ações o que ministramos todos os dias, que é amar a Deus sobre todas as coisas e do todo o coração, e ao próximo, como a nós mesmos. É uma orientação divina, descrita no livro de Marcos 12:30-31”, afirma o pastor Zildomar Campelo, idealizador do projeto. 

pastor Zildomar Campelo, idealizador do projeto

Durante a preparação, a igreja recebe doações de água, pães, café, frutas, sucos, além de ajuda financeira, oferta de tempo e talento para cozinhar, tudo o que possa auxiliar os irmãos católicos na caminhada de fé. De acordo com o pastor Zildomar, a ajuda ao próximo fortalece o “espírito voluntário de cuidado e amor”, atitudes que a igreja busca estimular entre os fiéis evangélicos. O projeto tem apoio do Arcebispo Metropolitano de Belém, Dom Alberto Taveira, e do Pastor Presidente da Assembleia de Deus em Belém, Samuel Câmara, servindo de referência de solidariedade a outras igrejas evangélicas ao redor do Brasil. 

“É isso que a igreja busca: despertar o sentimento de compaixão e de amor por quem não se conhece. A Assembleia de Deus nutre respeito pelas pessoas que participam do Círio. E é por esse motivo que a igreja abre as portas para oferecer, como igreja, ajuda àqueles que precisam. Nós buscamos ser imagem e semelhança de Deus. Jesus estava aonde as pessoas estavam e, como seguidores de Cristo, não poderíamos estar em outro lugar nesta época do ano, reafirma o organizador. 

AFRO-RELIGIOSOS

Alguns integrantes de religiões de matriz africana, Umbanda e Tambor de Mina, também se inserem na celebração à sua própria forma: dentro e fora dos terreiros. Para essas doutrinas, Nossa Senhora de Nazaré possui atributos semelhantes a orixá Oxum, já que ambas são tidas como senhoras das águas doces e estão ligadas à maternidade e proteção. Nos terreiros são realizadas festas e louvações a yabá (orixá feminina), que foi historicamente sincretizada com a santa católica; enquanto fora deles os filhos de santo prestam homenagens durante a passagem da imagem Peregrina.  

“Os umbandistas e adeptos do tambor de mina,  que prestam devoção santoral,  participam de vários rituais do complexo litúrgico nazareno. Eles recebem a peregrinação da santa que antecede a festa, acompanham as procissões, e, no final da quadra nazarena, algumas casas tocam tambor para entidades africanas, como Sinhá Abê, Nevezuarina ou para Oxum. O Círio, para eles, também tem um desdobramento que acontece dentro dos terreiros”, explica a doutora em Antropologia, Taissa Tavernard. 

Em contrapartida, a participação dos candomblecistas de diversas nações (nagô, jeje, ketu, angola) ocorre através da expressão artística e cultural, contribuindo para o aspecto mais profano da celebração. São eles os responsáveis, em sua maioria, pela organização do Auto do Círio, manifestação artístico-cultural que toma conta das ruas da Cidade Velha; além de estarem presentes durante a Festa da Chiquita, na praça da República. “Os candomblecistas, cuja identidade é marcada pela busca da africanidade, participam, sobretudo, do Auto do Círio, que, na minha visão, transformou-se em uma ‘procissão’ acompanhada e realizada por religiosos não cristãos”, afirma a historiadora.  

Durante a realização desses eventos, “os povos da rua”, como Exus e Pombagiras, são chamados e referenciados para proteção do cortejo. “Durante o cortejo-procissão, é muito comum ver referências visuais a figuras dos Exus e Pombas-Giras. Um ritual que acontece no espaço da rua, precisa da presença do povo de rua. Alguns membros do candomblé Ketu, mais ligados ao movimento negro, vendem comidas religiosas e tocam tambores na praça da República, próximo ao Theatro da Paz, no mesmo momento em que acontece a Festa da Chiquita”, relata a discente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFPA.

Mais de 75 anos ligam a tradição da festa nazarena ao Templo Espírita de Umbanda Cabocla Yacira (T.E.U.C.Y). O respeito e devoção a Nossa Senhora iniciou com sacerdote Pai Airton Soeiro, que foi guarda da santa por muitos anos, sendo afastado após o conhecimento dos padres sobre ser umbandista. Hoje comandado por Mãe Yacira, o terreiro mantém a tradição de mais de meio século prestando homenagens durante a passagem da imagem Peregrina pela BR-316, na procissão do Traslado para Ananindeua-Marituba. 

A preparação inicia na quinta-feira do Círio, quando os filhos de santos vão a casa de axé, vestidos de branco, para uma sessão de passe e cura. Ao final, a ritualística segue com louvores e preces à Maria e às correntes das águas de Oxum e Iemanjá para que sejam retiradas todas as mágoas, tristezas e rancores acumulados durante o ano, purificando o campo espiritual. Na sexta-feira, dia da procissão, cerca de 70 filhos se posicionam às margens da rodovia para prestar auxílio aos peregrinos com doação de água e alimentos, além de atendimento à saúde. 

Ao rufar dos atabaques e ao som das cantigas em iorubá, os umbandistas saúdam a Virgem de Nazaré. “Com o coração transbordando de amor e fé, batemos nossos tambores, cantamos nossas cantigas para louvar e agradecer a mamãe Oxum pela água doce da vida e a Nossa Senhora de Nazaré por ter trazido ao mundo o grande mestre Jesus, que ensinou a poderosa força do amor. São duas senhoras distintas em suas histórias e crenças, porém idênticas quando o assunto é amor por seus filhos”, relata Ya Gedeunsu (mãe Rita Souza), yakekere Ilê Axé Oyá Egunitá – Manso Bando Keke Bisneta.

Ya Gedeunsu (mãe Rita Souza), yakekere Ilê Axé Oyá Egunitá – Manso Bando Keke Bisneta. Foto: Antonio Melo

As homenagens e o cuidado com os irmãos de outras religiões é uma oportunidade importante para o povo do axé. “É uma oportunidade de mostrar à sociedade que o povo de axé é do bem, que somos irmãos, somos iguais e Nossa Senhora abre esse caminho para nós. Eu entendo o Círio como um grande evento de confraternização e aproveitamos disso para nos doar a nível de amor e de acolhimento dos romeiros. Fazer isso é da nossa essência, mas quando conseguimos sair dos muros do terreiro e mostrar um pouco do que vivemos no cotidiano, é maravilhoso e especial”, afirma a sacerdotisa. 

O amor a Maria também é a motivação dos filhos de santo do Espaço Afro-Religioso Mãe Dinair – Terreiro São Sebastião e Toya Jarina. Localizado na avenida Augusto Montenegro, a casa de umbanda presta homenagens na passagem da Santa na Romaria dos Rodoviários, na manhã do sábado do Círio. Com chuva de papel picado eles saúdam a imagem Peregrina, ato simbólicos que reforçam a relação da casa com a grandeza da Virgem Maria. Para o zelador do terreiro, as homenagens marcam uma história de relação entre a imagem de Nossa Senhora de Nazaré e da Orixá Iemanjá. 

“Nós temos esse lado do sincretismo religioso, em que acreditamos nos santos da igreja e também cultuamos os nossos orixás e encantados. Essa relação forte entre os santos católicos com as divindades da natureza é que faz a gente ter esse amor pelas festas dos santos católicos e a principal é a de Nossa Senhora de Nazaré. Na época da colonização do Brasil, os indígenas e negros escrvizados queriam culturar seus santos de origem, então usavam a imagem dos santos católicos para fazer essa relaççao. Então, a nossa ligação de amor com Nossa Senhora já é construída desde essa época”, conta Pai Elivaldo Santos de Oxalá. 

No sábado de Trasladação, 150 filhos de santo reúnem no terreiro, paramentados, e seguem em peregrinação rumo à Basílica Santuário com o objetivo de acompanhar a procissão. Durante o trajeto, juntos, eles caminham cantando louvores, fazendo orações e pedindo intercessão da Virgem, assim como milhares de paraenses. “Os filhos vem das suas casas caminhando e partimos para a Basílica para acompanhar a procissão. Vamos rezando o terço, prestando homenagem a nossa mãe maior, que é Nossa Senhora de Nazaré”, finaliza Pai Elivaldo.