Apesar de já existirem tratados anteriores que previam o combate à discriminação e à violência contra as mulheres, durante muito tempo esse crime era tolerado não apenas pela sociedade, como pelo próprio poder público. Porém, a partir do surgimento da Lei Maria da Penha, que no próximo dia 07 de agosto completa 18 anos, o cenário atual é de maior conscientização de que a violência doméstica não é tolerável e, mais ainda, de que é papel de todos buscar meios de coibir esse ato criminoso que, infelizmente, continua sendo realidade no Brasil e em todo o mundo.
Mesmo que avanços ainda precisem ocorrer, sobretudo no que se refere à implementação das medidas previstas na Lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, o impacto causado pela criação da legislação específica já é visível e, em alguns casos, por ser quantificado.
Auxiliar da Ouvidoria da Mulher do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA) e Titular da 1ª Vara Criminal Distrital de Icoaraci, a Juíza Reijjane Ferreira de Oliveira cita como exemplo alguns números apresentados pelo último Anuário Brasileiro da Segurança Pública, que aponta que o 190, número através do qual a Polícia Militar recebe denúncias, foi acionado mais de 800 mil vezes em 2023 para reportar episódios de violência doméstica; bem como, no mesmo período, o judiciário brasileiro concedeu mais de meio milhão de medidas protetivas a mulheres.
Para a juíza, tais indicadores demonstram que a sociedade está mais consciente sobre a importância de denunciar esse tipo de violência, assim como que as mulheres têm conhecimento da possibilidade de procurar o judiciário para solicitar a medida protetiva de urgência, um importante instrumento de proteção das suas próprias vidas. “Tem havido uma maior conscientização com relação aos direitos das mulheres. As mulheres estão tomando mais consciência a respeito desses direitos, de saber que podem pedir a medida protetiva de urgência, e os números mostram isso”.
Reijjane destaca que a Lei Maria da Penha é considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) uma das três melhores leis do mundo no que se refere à proteção às mulheres, na medida em que contempla medidas para prevenir, coibir e punir a violência doméstica familiar contra a mulher. Exatamente pela complexidade que a lei abarca, a juíza avalia que o principal impacto causado pela legislação foi essa mudança de cultura na sociedade.
“A Lei Maria da Penha é um marco importantíssimo para as mulheres brasileiras, para a sociedade brasileira, para o Estado brasileiro no que concerne à compreensão, à conscientização acerca da violência de gênero que é praticada contra as mulheres, que é uma violência que ocorre pelo fato de ser mulher e que isso é uma violação aos direitos humanos das mulheres, que priva as mulheres de exercer a sua liberdade, de exercer a sua condição de ser de estar na sociedade”, contextualiza.
“Então, a Lei Maria da Penha traz esse significado muito importante como um marco que muda a cultura com relação a como se vê a violência contra a mulher, que até então era vista como uma questão de ordem privada, de dentro de casa, e a partir de então se diz essa que essa responsabilidade é do Estado e é da sociedade”
PARA ENTENDER AS MUDANÇAS NA LEI
MUDANÇAS
l Para que chegasse à configuração que se tem hoje, ao longo desses 18 anos de existência da Lei Maria da Penha passou por muitas mudanças que vieram proporcionar uma maior proteção às mulheres. Além de outras que não mudaram a Lei Maria da Penha em si, mas que também proporcionaram alterações significativas em direção à proteção das mulheres.
A auxiliar da Ouvidoria da Mulher do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA) e Titular da 1ª Vara Criminal Distrital de Icoaraci, a Juíza Reijjane Ferreira de Oliveira, aponta que uma dessas leis que não alteraram a Lei Maria da Penha, mas que são muito importantes é a Lei 13.104, de 9 de março de 2015, que alterar o artigo 121 do Código Penal que trata do crime doloso contra a vida. “Essa lei vem dizer que o crime considerado feminicídio, ou seja, aquele crime contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, e o que ela considera razões de condição de sexo feminino é quando o assassinato da mulher envolver violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
Por ser uma qualificadora ao crime de homicídio, a lei estabelece que o crime de feminicídio tem uma pena mínima de 12 anos, podendo chegar a 30 anos, enquanto no homicídio simples, o que não tem qualificadora, a pena é de 6 a 20 anos. Além disso, há um aumento de pena quando o feminicídio é praticado durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto, quando é praticado contra uma pessoa menor de 14 anos ou maior de 60 anos, ou que tenha deficiência. Há, ainda, um aumento de pena quando o crime é praticado na presença de descendente ou de ascendente da vítima. “Então, essa lei é muito importante porque vem dizer à sociedade que o crime de feminicídio é muito grave e que ele precisa ser visto com essa gravidade pela sociedade”.
LEI 13.641/2018
l Outra lei destacada pela juíza é a 13.641, de 03 de abril de 2018, que promove uma alteração na Lei Maria da Penha, acrescentando o artigo 24-A, que estabelece que descumprir a decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha é crime punido com a detenção de três meses a dois anos. “Antes dela, o agressor tinha a medida protetiva, mas se ele descumprisse não era considerado um crime, então, ele não podia ser autuado em flagrante, a prisão preventiva dele ia ficar a depender da análise de vários outros fatores e, com essa lei, o que se diz é que essa conduta é um outro crime e ele vai responder”, explica a juíza. “Se, por exemplo, a medida protetiva foi concedida em decorrência de um crime, de uma ameaça ou de uma lesão ou de uma violência psicológica e ele descumprir a medida protetiva, agora ele vai responder também por esse outro crime de descumprimento de medida protetiva”.
LEI 11.340/2019
l Promulgada em 2019, a Lei 13.827 também promoveu modificações na Lei Maria da Penha e autoriza, em alguns casos, a aplicação de medida protetiva de urgência à mulher e aos seus dependentes que sejam vítimas de violência doméstica familiar por autoridade policial. Isso significa que, onde não há um juiz ou uma juíza, se a mulher estiver em uma situação de violência doméstica e familiar, a própria autoridade policial pode conceder a medida protetiva e, de imediato, comunicar a autoridade judicial.
LEI 13.836/2019
l De 2019, a Lei 13.836 torna obrigatória a informação sobre a condição de pessoa com deficiência da mulher vítima de agressão doméstica e familiar e, ainda, se a violência foi praticada contra uma pessoa que tem deficiência ou se da violência resultou um agravamento da deficiência preexistente, ou se resultou uma deficiência que ela não tinha.
LEI 14.149/2021
l Já a Lei 14.149 de 2021 criou a obrigatoriedade do registro das medidas protetivas concedidas em um banco de dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Toda medida protetiva que é concedida, a autoridade judicial vai cadastrar, vai registrar essa medida num Banco Nacional do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e, então, em qualquer estado que haja alguma violação a essa mulher será possível saber se ela já tinha medida protetiva anteriormente. Então, a autoridade policial vai poder verificar que ali houve, também, um descumprimento de medida protetiva”, explica Reijjane Oliveira.
LEI 14.149/2021
l Em 2021 também foi sancionada a Lei 14.149, que torna obrigatório o preenchimento do Formulário Nacional de Avaliação de Risco, que identifica os fatores que indicam um maior risco às mulheres que já estão em situação de violência doméstica. A juíza destaca que a medida subsidia os órgãos de segurança pública, o Poder Judiciário e o Ministério Público a fazer a gestão do risco identificado no formulário e poder incluir a mulher em programas de acompanhamento de maior segurança como, por exemplo, a Patrulha Maria da Penha.
LEI 14.188/ 2021
l Ainda em 2021, a juíza destaca a Lei 14.188 que surgiu a partir de um programa instituído pelo CNJ e pela Associação de Magistrados Brasileiros e que depois foi convertido em lei, o Programa Sinal Vermelho. “É uma campanha em que a mulher faz um X vermelho na mão e, com esse símbolo, a sociedade e servidores, funcionários de instituições públicas ou empregados de empresas privadas que participem desse programa podem identificar que aquela mulher está numa situação de violência e fazer o encaminhamento e o atendimento especializado dessa mulher”.
LEI 14.550/2023
l Já no ano passado, uma mudança também bastante significativa destacada pela juíza foi a Lei 14.550, que inseriu o parágrafo 5º ao artigo 19 da Lei Maria da Penha. “Esse parágrafo quinto vem dizer que as medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência. Com isso, afasta-se qualquer interpretação de que, para a mulher ter uma medida protetiva, ela precisa registrar o boletim de ocorrência ou precisa mostrar que aconteceu um crime ou que está na iminência de ocorrer um crime. Então, basta que a mulher solicite a medida protetiva dizendo que está com receio, que está com a sua integridade psicológica ou física ameaçada, ou basta que ela diga que está se sentindo ameaçada”, aponta a juíza Reijjane Ferreira de Oliveira. “Ademais, essa lei também vem afastar as interpretações no sentido de que ‘ah não tem inquérito ou inquérito foi arquivado, o agressor ou agressora foi absolvido na sentença, então acabou a medida protetiva’, não. Enquanto perdurar o risco, a mulher tem o direito de ter a medida protetiva porque isso vem ao encontro da proteção que está prevista na Convenção de Belém do Pará, que diz que a mulher tem o direito a uma vida livre de todas as formas de violência”.