Videolocadora - Carlos Eduardo Vilaça

“Invasores de corpos” e o terror político: paranoia e insanidade lado a lado

Dentre as quatro adaptações da obra de Jack Finney, “Invasores de Corpos”, a segunda, dirigida por Philip Kaufman, em 1978, é a mais aterrorizante, tanto em seu aspecto conspiratório quanto na tensão da luta pela sobrevivência. Conforme o cerco vai se fechando, a humanidade vai ficando para trás – literalmente ou não – e os alienígenas tomam conta do planeta, culminando em uma cena final catártica, que causa arrepios e está entre as melhores da história do cinema de horror. E muito disso se deve à interpretação insana de Donald Sutherland como Matthew. O ator, morto no último dia 20, aos 88 anos, tinha esse poder de nos hipnotizar com seu olhar e transmitir toda sorte de emoções – ou a falta delas – de maneira memorável.

O filme é definitivamente o meu favorito estrelado por Sutherland. E olha que ele foi bastante prolífico em sua carreira de mais de 60 anos, seja marcando presença em grandes e conceituadas produções até em participações naquelas em que você passa o olho e sabe que o ator só topou porque tem contas a pagar. O bom é que com Sutherland, mesmo nesse segundo caso, é possível se encantar com sua interpretação. Mas, quando soube da sua morte, minha mente me levou imediatamente para “Invasores de Corpos”. Então, é sobre este filme que vamos conversar hoje.

Para começar, Philip Kaufman teve uma grande responsabilidade em mãos, pois “Vampiros de Almas”, de Don Siegel, primeiro longa que levou essa história para as telas, em 1956, é um clássico irretocável, que, além do terror em si, acabou tornando-se uma obra de caráter político, mesmo que esta não fosse a intenção original tanto do livro quanto do filme, segundo seus realizadores. O que proporcionou essa leitura crítica foi o contexto da época, com o mundo em plena Guerra Fria e os EUA sob o sistema de censura da política do macarthismo. Assim, quando a invasão em uma pequena cidade tem início e os moradores são substituídos por alienígenas, a perseguição aos humanos que restam ganha ares de metáfora, uma crítica, seja ao macarthismo ou à própria doutrina socialista.

Em 1978, o panorama já era outro, com a violência urbana no centro do debate. Dessa forma, o filme de Kaufman optou por atualizar a história e o fez extraordinariamente. O roteiro, escrito por W. D. Richter, ambienta a trama em uma grande cidade, São Francisco, incluindo aqui e ali elementos que revelam como os seres humanos se acostumaram a viver em meio à barbárie, como o fato de Matthew, o protagonista, ser um agente do Departamento de Saúde. É um detalhe emblemático, pois ele precisa lidar com a sujeira produzida pelas pessoas e é visto com maus olhos por cumprir as regras. Não à toa ele é tão resistente aos alienígenas, já que, ao contrário dos demais humanos do filme, é atento e disciplinado. Resta a dúvida: ele sucumbirá ao inimigo? A paranoia tomará conta? A permanência desse olhar crítico sobre a sociedade é fantástico, pois tem o poder de colocar tudo o que vemos sob outra perspectiva.

Casa bem com o filme também a dualidade de se passar em um centro urbano, que seria uma escala maior para o ataque, com o minimalismo da invasão alienígena de fato. Não há naves espaciais e efeitos visuais elaborados. Os aliens são pequenos organismos, esporos que saem do seu planeta e viajam pelo universo até a Terra em uma cena de abertura que já nos dá tudo que precisamos saber: eles se espalham pela nossa vegetação, copiam suas características e, voilà, surgem cópias perfeitas, prontas para serem levadas para casa por humanos incautos que serão os próximos alvos das “substituições”. E na primeira vez que vemos esse processo acontecer a repugnância toma conta e o mérito é totalmente do trabalho de maquiagem, aliado com o design de som, que torna a cena claustrofóbica, tensa e apavorante.

Um aspecto em que muitos filmes perdem o elo com o espectador está na chamada “suspensão de descrença”, quando os fatos apresentados deixam de ser verossímeis. Isso poderia acontecer aqui, quando o roteiro se torna muito direto e conciso em mostrar que a invasão começou e as pessoas estão sendo substituídas, levando a suspeitas de esposas e maridos, que não são levados a sério por ninguém, dando tempo mais do que suficiente para que a invasão se alastre. Mas essa rapidez tem um ponto de equilíbrio no personagem de Leonard Nimoy, o dr. David Kibner, psiquiatra, que trata o caso de forma racional, analisando sob a ótica cotidiana de relacionamentos desgastados. “Uma verdadeira epidemia”. Ninguém quer resolver seus problemas, apenas fugir deles e começar a ter ilusões. Simples e brilhante.

Por fim, essa ambiguidade que permeia o filme durante toda a sua exibição é o que o faz ser tão especial. A noção deturpada de realidade, os horrores sociais, as mais diversas interpretações que mostram a força dessa obra. O fato de Jack Finney não a ter escrito como uma alegoria política, e sim como mera história de ficção científica, não invalida o argumento, afinal a Arte pode ser ressignificada, aceita de bom grado novas interpretações e sentimentos. Depois de feita, deixa de ser só do autor e passa a ser de todos nós. É com esse raciocínio que mantenho minha opinião de que este “Invasores de Corpos” é uma obra aberta, sem um final definitivo. A dúvida permanece e a principal razão é o que motivou este texto em primeiro lugar: a atuação icônica de Donald Sutherland para Matthew. Basta ver os seus olhos injetados, acusatórios e ao mesmo tempo amedrontados; e sua postura, que pode parecer desconfortavelmente rígida ou naturalmente fingida. Impossível saber. Assustador.

ONDE ASSISTIR

  • “Invasores de Corpos” (1978) está disponível para streaming na Darkflix+ e para aluguel na Amazon Prime Video.

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