Carol Menezes
No final de maio o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) tornou, à unanimidade, inconstitucional a prática de questionar a vida sexual ou o modo de vida da vítima na apuração e no julgamento de crimes de violência contra mulheres. Com essa decisão, se houver algo nesse sentido, o processo deve ser anulado.
O entendimento da corte é de que perguntas desse tipo perpetuam a discriminação e a violência de gênero e vitimiza duplamente a mulher, especialmente as que sofreram agressões sexuais. Advogada de Direitos Humanos graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestra em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP), Joana Zylbersztajn explica que, na prática ficam vedados os argumentos que desqualifiquem ou atribuam valores morais negativos às mulheres durante os julgamentos em que são vítimas de violência, seja contra sua dignidade sexual, seja de violência doméstica ou política. “Essa proibição inclui o afastamento desses argumentos para a fixação de pena do agressor”, relaciona.
Joana destaca ainda que este conceito, óbvio em seu entendimento, inclusive já previsto em lei recente (14.245/21), porém ignorada que o pelo Judiciário brasileiro até então.
“A decisão é explícita ao determinar que é ‘dever do julgador atuar no sentido de impedir essa prática inconstitucional, sob pena de responsabilização administrativa, penal e civil’. Ou seja, cabe ao magistrado garantir a proteção da mulher e que os argumentos que desqualificam a vítima não sejam trazidos ao processo”, pontua.
A expectativa a partir dessa mudança é que as vítimas estejam um pouco mais protegidas nos processos e sintam-se mais seguras para denunciar as diversas formas de violência de gênero. Casos anteriores em que as vítimas se sentiram constrangidas inclusive podem ser revistos.
“A não ser nos casos em que foi utilizado o conceito da legítima defesa da honra, já considerado inconstitucional anteriormente. O objetivo neste caso específico é evitar que o réu cause a nulidade do caso e induza a um novo julgamento”, justifica.
A advogada alerta que a representação da vítima deve estar atenta para manifestar-se caso essa determinação não seja respeitada, ressaltando o risco de nulidade do processo. Cabe ao juiz também garantir o cumprimento dessa norma, também sob pena de responsabilização.
Advogada especializada em gênero, formada pela Universidade de Brasília (UNB), doutoranda em Política na New School for Social Research, em Nova York, e mestre em Direito Criminal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Mayra Cotta reforça que a decisão do STF configura mais um passo no reconhecimento dos obstáculos que a mulher enfrenta pelo simples fato de ser mulher.
“O voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, chancelado unanimemente pelo plenário, faz uma análise histórica das lutas e conquistas sociais pela igualdade de gênero. Ela ressaltou que mesmo com os inúmeros avanços, ainda existe uma complacência do Estado e da sociedade com a discriminação e a violência contra a mulher”, enaltece.
Para Mayra, o entendimento da Corte Suprema na verdade formaliza o fato de que a sociedade é permissiva com a violência baseada em gênero, relativiza essas práticas discriminatórias, e isso precisa ser enfrentado. “Contamos com avanços legais importantes nessa agenda, mas o dia a dia das mulheres ainda é permeado de assédio e violência”, reconhece.
Decisão é acompanhada de outros avanços normativos
No âmbito das relações de trabalho, há algumas leis recentes, como a 14.457/22, que prevê a “promoção de um ambiente laboral sadio, seguro e que favoreça a inserção e a manutenção de mulheres no mercado de trabalho”. Para isso, Mayra indica às empresas com Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio (CIPA) a adoção de medidas específicas com vistas à prevenção e ao combate ao assédio sexual e às demais formas de violência no âmbito do trabalho.
“Contamos também com a Lei 14.611/23, que determina que as empresas brasileiras com mais de 100 funcionários devem publicar relatórios de transparência salarial e critérios remuneratórios a cada seis meses, incluindo dados anonimizados que permitam uma comparação objetiva entre os salários, remunerações e a proporção de cargos de liderança ocupados por ambos os gêneros”, cita a advogada.
No âmbito criminal, as inovações incluem o reconhecimento do crime de importunação sexual (art. 215-A do Código Penal), o crime de perseguição, ou stalking (art. 147-A do Código Penal) e a violência psicológica contra a mulher (art. 147-B do Código Penal).