Videolocadora - Carlos Eduardo Vilaça

"Luzes da cidade": poesia em forma de filme

Em 1931, quando Chaplin lançou “Luzes da cidade”, o cinema já vivia plenamente a era do som. Manter o seu doce e atrapalhado Vagabundo em silêncio foi uma atitude corajosa de um artista que entendia perfeitamente a essência do seu tão querido personagem. “A poesia é, de fato, o fruto de um silêncio que sou eu, sois vós / por isso tenho que baixar a voz / porque, se falo alto, não me escuto”, já dizia Ferreira Gullar. E Carlitos, com a sua alma de poeta, vê a beleza em um mundo cínico e, por vezes, cruel, e tenta compartilhá-la, não com palavras, que podem soar vãs, mas com o olhar, a expressão corporal, que revelam a verdade em seu sentimento.

Charlie Chaplin deixa isso claro logo na cena de abertura, quando, na inauguração de uma estátua, as palavras que saem da boca das autoridades presentes não são representadas pelos clássicos letreiros explicativos, e sim por grasnados extremamente irritantes e ininteligíveis, enquanto o Vagabundo, que dormia pacificamente ali e fora bruscamente acordado, tentava descer em um balé cômico, o que enraivecia a plateia na praça, estabelecendo de imediato a sua condição de marginalizado, de pária. Panorama traçado e declaração de princípios do autor transmitida com sucesso: sim, este é um filme mudo.

Filmes mudos têm uma aura encantadora. Entendo que para a audiência de hoje, nesses tempos acelerados que vivemos, em que a atenção é dispersa e até vídeos de mais de um minuto já são longos demais, é um pouco mais complicado convencer as pessoas disso. Mas o caráter universal da obra de Chaplin e o estilo quase episódico das palhaçadas, tudo muito bem coreografado, podem dar uma percepção moderna e mais palatável às novas gerações. Por isso é preciso, assim como Chaplin, resistir e falar sobre esses filmes, mostrar não só a sua importância, como também ressaltar suas qualidades. Especificamente sobre “Luzes da cidade” e os demais filmes de Chaplin, mostrar o quão engraçados e comoventes eles são.

“Luzes da cidade”, por sinal, é considerado por muitos críticos como o melhor filme de Chaplin. Embora tenha mais carinho por “O garoto” e “Em busca do ouro”, não entraria em uma briga para defender tais escolhas. Simplesmente porque “Luzes da cidade” é mesmo genial, especialmente no fino equilíbrio entre o humor e a melancolia. Roger Ebert escreveu que “o dom de Chaplin era realmente mágica”. É uma excelente descrição, pois se trata de um trabalho tão meticuloso, tão sensível, que é praticamente impossível imaginar um processo meramente industrial por trás de tudo isso. Bem, é por filmes assim que expressões como “a magia do cinema” se eternizaram, por certo.

Inebriado, talvez, por essa aura sublime, o adorável Vagabundo se apaixona por uma vendedora de flores cega. Ela lhe trata bem, toca o seu coração apenas por “enxergá-lo”. Ele não está acostumado com isso. Ora, até o “amigo”, salvo da morte por ele, só o reconhece quando está bêbado. Mas, quando ela o confunde com um milionário, Carlitos não desfaz o mal entendido e passa a ajudá-la da maneira que pode, inclusive ajudando-a a pagar pela cura para seus olhos. Ele, então, arruma trabalho – e confusão; vai lutar boxe – e arranja novas confusões em um momento clássico do cinema. Faz, enfim, o que foi moldado pela sociedade para fazer: sobrevive, munido por sua esperteza e criatividade.

O grande trunfo de “Luzes da cidade” reside no seu tom agridoce. Sim, a crítica social, uma constante no trabalho de Chaplin, permanece, assim como o timing perfeito da comédia pastelão. Mas o melodrama está mais acentuado do que o costume. É o romance que move a trama. Assim, quando vamos nos encaminhando para o encerramento, o sorriso no rosto vai sendo, lento e dramaticamente, molhado por lágrimas que caem sem aviso prévio, da forma mais natural possível. Pode até parecer piegas, mas acredite, não é. Afinal, estamos diante de uma das cenas finais mais belas da história do cinema.

ONDE ASSISTIR

  • “Luzes da cidade” está disponível para streaming no Globoplay, MUBI, Belas Artes à La Carte, KinoPop ou no Pluto TV gratuitamente com comerciais nos intervalos.

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