"A bruma assassina": uma clássica história de fantasma

Um sucesso de John Carpenter que resultou em um posterior fracasso. É uma boa teoria para explicar a recepção fria de “A bruma assassina”, em 1980. Ora, com “Halloween”, lançado dois anos antes, o cineasta praticamente fundou as bases para a predominância do subgênero slasher em toda a década seguinte. Era o que o público do cinema de horror queria assistir à época: as matanças de serial killers, com direito a verdadeiros banhos de sangue e um ritmo frenético. Mas bastava prestar atenção ao trabalho do próprio Carpenter, no mesmo “Halloween”, inclusive, para perceber que dificilmente ele seguiria essa linha.

Assim como Michael Myers, a névoa que recobre a aparentemente pacata Antonio Bay é ameaçadora em sua onipresença. Está nos espaços vazios, nas sombras, na atmosfera lúgubre de uma cidade parada no tempo e que tem segredos escondidos embaixo do tapete. Está nos sons de telefones ou alarmes quebrando o silêncio da noite, no ranger de portas e janelas, vidros se espatifando ou até um simples varrer o chão. Cenas cotidianas que passam a ter outro significado, amedrontador. É nesse tom que Carpenter tece sua criatividade atrás das câmeras e executa sua estética macabra.

A assinatura única de Carpenter é essencial para destacar “A bruma assassina”, pois o filme tem uma estrutura clássica que poderia cair na mesmice. Assim como todo conto de fantasma que se preze, traz em seu cerne uma nota de lamento. Um pesar que se transforma em rancor, um sentimento forte o suficiente para atravessar gerações: um velho marinheiro narra para crianças a história de uma embarcação, o Elizabeth Dane, que, há 100 anos, envolto por uma densa névoa e enganado pela luz de uma fogueira que imaginava ser de um farol, colide nas rochas e afunda, causando a morte dos seus tripulantes, que voltam para se vingar.

O crítico Roger Ebert foi um dos que se incomodou com a ausência de uma ameaça mais concreta: “Uma névoa senciente pode ser fotogênica (e este é um filme bonito), mas podemos nos identificar com ela? É o tipo de vilão que amamos odiar? Na verdade, não”. Ebert também desconfia da motivação dos fantasmas e atira várias perguntas no ar, esquecendo-se, talvez, de que o cinema de John Carpenter é essencialmente imagético. Sim, Ebert tem um ponto, mas não há como não se aterrorizar com os fantasmas saindo da névoa, silhuetas de olhos vermelhos, passos lentos, encharcados e decididamente mortais. Eles exalam perigo. A cena do fantasma batendo à porta do personagem de Tom Atkins causa calafrios.

Além disso, em seu estudo “A filosofia do horror ou paradoxos do coração”, o autor Noël Carroll destacou que “Falar sobre o caráter indomável do monstro também aumenta a percepção por parte do público da improbabilidade de derrotar a fera”. Nesse aspecto, o filme é inteligente e eleva o suspense ao máximo a partir da personagem de Adrienne Barbeau, uma radialista, que, de sua posição privilegiada do alto de um farol, funciona como um espelho para os olhos e sentimento do público. Se ela se apavora, nós também temos motivo para isso.

O horror que vem da névoa

O filme, aliás, possui esse elemento crucial: personagens com os quais nos importamos, o que potencializa o tamanho da ameaça. A Stevie de Adrienne Barbeau é uma delas, claro, mas são Tom Atkins e Jamie Lee Curtis, com seus Nick e Elizabeth, que roubam cada cena. A simpatia que nutrimos por eles é instantânea. Na cena, Nick dirige à noite, quando Elizabeth pede uma carona. Ao entrar no carro, pergunta: “Você é esquisito?”. A resposta: “Sim, claro”. Corta para ela totalmente aliviada. Um diálogo afiado, espirituoso e, a partir dali, eles empreendem uma relação com tamanha naturalidade que é impossível não acompanhá-los com o máximo de interesse.

E não é só isso. Como se trata de um pequeno povoado, o grupo de pessoas deve se destacar. Assim, temos Andy, que ouvia a história de fantasmas lá no início e agora se vê no meio de uma; a senhora Willians, interpretada pela maravilhosa Janet Leigh; o padre Malone, o único que foge à regra do puro instinto de sobrevivência e carrega o peso de um passado ancestral… São personagens secundários que enriquecem a narrativa pela sua expressividade.

Carpenter, por sinal, espalha pelo filme inúmeras referências cinematográficas e literárias do gênero do horror que aumentam exponencialmente esse grau de expressividade e melancolia. Da citação inicial de Edgar Allan Poe, “Tudo o que vemos ou transparecemos é nada além de um sonho dentro de um sonho” passando por Arthur Machen e Peter Straub até chegar a “O Abominável Dr. Phibes” e à cinematografia de Alfred Hitchcock, tudo colabora para a criação da atmosfera de fábula, na qual Carpenter brinca com o limite entre realidade e ficção – e que ele exploraria com muito mais vontade anos mais tarde em “À beira da loucura”.

Até por esse motivo, gosto do título em português, “A bruma assassina”, soa bem mais poético – e mais condizente com o produto final – do que o original, “The Fog”, simplesmente “A névoa”, embora possa enganar o espectador, levando-o a crer em um excesso de mortes. Carpenter até precisou reescrever e reeditar algumas cenas para mostrar mais dos fantasmas, mas, ainda assim, manteve-se fiel aos seus princípios como cineasta, atendo-se muito mais à construção do suspense e do horror, do que propriamente da execução de uma cena sanguinolenta. Princípios esses que podem até tê-lo levado a um fracasso no lançamento, mas que, anos depois, lhe renderia status de cult, com o filme ocupando o seu devido lugar como um dos grandes trabalhos de um mestre do cinema.

ONDE ASSISTIR

  • “A bruma assassina” está disponível para streaming na Darkflix, no Looke e NetMovies; o filme ainda está disponível para aluguel e compra na Apple TV, Google Play e Amazon Video.

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