Ouvir música, especialmente na adolescência, é uma experiência ritualística. Descobrir um novo som, senti-lo tocar não apenas nos ouvidos, mas na alma, é algo mágico. Ainda mais quando existe todo um movimento sociocultural ao seu redor, que quebra paradigmas, deixa claro que existem outros como você, com os mesmos gostos, conflitos, dúvidas… Trata-se de encontrar o seu lugar no mundo. Por isso, paradoxalmente, dentro de toda a extravagância, todo o exagero de “Velvet Goldmine”, em sua ambição de retratar a história do glam rock, são duas passagens totalmente intimistas que trazem o cerne deste filme de Todd Haynes: a busca pela própria identidade.
Ambas envolvem recordações do jornalista Arthur Stuart, interpretado por Christian Bale, da época em que era apenas um garoto confuso. A primeira ouvindo o seu novo LP na vitrola, consumindo tudo sobre o seu artista preferido para, depois, imitá-lo. E outra, mais adiante, ao vê-lo na TV, exprimindo uma visão peculiar de mundo, com ideias bem à frente do seu tempo, e perceber que compartilha delas: “Sou eu. Esse sou eu”, imagina dizer em voz alta aos seus pais conservadores, com extrema empolgação. Talvez os únicos momentos mais sutis do filme. De resto, ele assume, como não poderia deixar de ser, a escala grandiosa do glam rock, inclusive em sua estrutura narrativa.
Para começar, temos uma nave espacial sobrevoando Londres, sugerindo uma natureza extraterrestre para o escritor Oscar Wilde como explicação não só para a sua influência na própria obra – “Eu quero ser um ídolo pop” – como para o fato dele ter se tornado um ícone queer como defensor da liberdade do amor homossexual. “Tal amor é tão mal compreendido neste século que se admite descrevê-lo como o ‘amor que não ousa dizer seu nome’. Ele é bonito, é bom, é a mais nobre forma de afeição. Não há nada nele que seja antinatural”, diz um trecho do seu famoso discurso no tribunal durante julgamento em 1895. Nas duas ocasiões, estar deslocado do seu tempo e não aceitar essa condição passivamente, simplesmente agir, bastava para você ser visto como “de outro mundo”.
Se a proposta temática já é arrebatadora por si só, Todd Haynes vai buscar inspiração em um divisor de águas do cinema para a forma do seu filme, copiando-a de “Cidadão Kane”. Dez anos depois do astro do glam rock Brian Slade fingir a própria morte e sumir dos holofotes, um repórter investigativo tenta localizar essa lenda viva e descobrir a verdade por trás de seu desaparecimento, tendo que revisitar a história do gênero musical e a sua própria. Tudo isso em uma linha temporal difusa, com memórias sendo pinçadas aqui e ali sobre quem, de fato, é Brian Slade. Cada pessoa tem sua versão do passado. Real? Irreal? Vai saber o que se passa pela cabeça de um artista que se reimagina constantemente.
Bom, caso você ainda não tenha percebido, Brian Slade é inspirado em David Bowie, que, inclusive, foi convidado a participar do filme, mas não só se recusou como também proibiu a utilização das suas canções – “Velvet Goldmine”, título de uma de suas músicas, não estava registrado, e os produtores aproveitaram. Mas essa limitação, de certa forma, fez bem ao filme, já que obrigou Haynes a ser criativo, fazer uma biografia do glam rock um pouco… diferente. Apelando muito mais à aura, ao espírito da época, do que se prendendo às pessoas que marcaram aquele período. Ainda assim, você pode reconhecer nos personagens figuras como o já citado Bowie, Iggy Pop, Lou Reed, Marc Bolan, Tony DeFries, Angela Bowie, Brian Eno, Bryan Ferry e até Little Richard, que Haynes clama ser a inspiração para Jack Fairy, o pioneiro do seu glam. Mas é óbvio que há uma mescla de vários personagens reais ali.
Mas, voltando a Slade. Assim como Bowie tinha em Ziggy Stardust um messias decadente, que refletia com exatidão a década de 1970 e todas as suas agruras, desde o anticlímax espacial até o fim dos Beatles, com aquela sensação de que o sonho havia acabado e a melancolia tomava conta de tudo, Brian Slade criou Maxwell Demon, um anti-herói roqueiro que ia às últimas consequências em sua performance, como nunca alguém ousou fazer, seja no conceito visual, com sua aparência moderna e apocalíptica; ou na sonoridade intensa, precisando ser apreciada no “volume máximo”- a trilha sonora, como não poderia deixar de ser, é sensacional.
Mas não só isso. Culturalmente, Demon, no filme, assim como Ziggy na vida real, também balançou as estruturas. Desde a sua origem influenciada pelo espírito violento que dominava a Inglaterra na época, tendo no filme “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick, um poderoso referencial, até a sua propalada ambivalência sexual, tudo ia de encontro aos chamados bons costumes. E Slade/Bowie não recuou. Foi até o fim com o seu ideal. Saiu de cena totalmente para dar lugar a esse extraterrestre, explorando toda a sua teatralidade.
Tudo isso é mostrado sem pudores em “Velvet Goldmine” e as interpretações de Jonathan Rhys Meyers, Ewan McGregor, Christian Bale e Toni Colette são poderosas. Eles encarnam à perfeição a rebeldia do período, a experimentação de uma realidade particular e criação do seu próprio universo, onde todos os tipos de barreiras sociais e regras se tornaram insignificantes. O mundo deles é andrógino e o prazer é o bem supremo. Tudo é glamouroso. Glam. Todd Haynes, definitivamente, conseguiu passar o seu recado.
ONDE ASSISTIR
- “Velvet Goldmine” está disponível para streaming na Max.
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