Uma das cenas que mais gosto em “Tubarão” é a conversa no barco entre Brody (Roy Schneider), Quint (Robert Shaw) e Hooper (Richard Dreyfuss). Pela intimidade criada entre aqueles homens ali no meio do mar, pelo tom melancólico e de teor alcóolico elevado. Além, é claro, da necessidade de respiro em meio ao caos e ao terror vivenciado na caçada. Eles não são super-heróis. São homens comuns em uma situação-limite. O riso deles é o nosso riso. Um momento de calmaria que, sabemos, logo irá se dissipar. E o melhor de tudo é saber que essa cena representa fielmente o espírito da produção do longa.
Explico. A filmagem, que deveria durar cerca de 50 dias, ao custo de 3,5 milhões de dólares, estourou prazo e orçamento. E não foi por uma margem pequena. Os valores chegaram à casa dos 10 milhões e o trabalho só foi finalizado por volta de cinco meses e meio depois. Durante esse período, o diretor Steven Spielberg duvidou de si e do seu filme diversas vezes – e ele não era o único. A bagunça imperava. Roteiro? As ideias flutuavam a cada momento em uma direção diferente. Até porque problemas com o tubarão mecânico se tornaram frequentes, suspendendo o trabalho por horas ou até dias.
Nesse ponto, Spielberg passou então a se reunir com o trio principal do elenco para discutir cenas, já que não havia o que gravar, e muitas das improvisações saídas desses encontros acabaram entrando na versão final do filme. É ou não um paralelo e tanto com a cena mencionada no primeiro parágrafo? A incerteza que os rondava, o desespero para ir adiante com a produção, a colaboração mútua como único caminho para… o sucesso? Ora, naquele ponto eles só queriam terminar o filme, e olhe lá. Embora George Lucas, em uma visita ao set, tenha vaticinado, após ver os storyboards e o modelo gigantesco do tubarão: “Se você conseguir pôr metade disso num filme, você terá o maior sucesso de todos os tempos”.
O mais curioso é que Lucas estava certo, mas por linhas tortas. Afinal, Spielberg “escondeu” o seu vilão até o terceiro ato do filme. Uma decisão criativa diante do imponderável, já que o modelo, como disse antes, vivia no “conserto”. Mesmo assim, suas soluções imagéticas foram nada menos do que brilhantes. O poder da sugestão, de um mal terrível à espreita, com somente suas consequências sangrentas à mostra para o espectador, transformaram o filme, agora totalmente hitchcockiano.
A câmera de Spielberg, de fato, é sagaz. A própria abertura do filme, focada no nosso conhecimento de que ali existe um perigo mortal e na reação da primeira vítima, dá o tom do desconforto que sentiremos até o final. Desconforto que será de tempos em tempos reforçado por ângulos inteligentes, como Brody espiando o mar pelo ombro da pessoa que conversa com ele ou então quando vemos o trio embarcando através da mandíbula “decorativa” de um tubarão exposta na janela de Quint. Além, claro, da clássica cena em que Brody percebe o ataque, com a câmera indo até ele em zoom dolly, distorcendo a perspectiva do público e amplificando o choque e a sensação de urgência por meio do pânico no rosto do personagem.
Some-se a isso a trilha sonora de John Williams, com seu tema econômico (apenas duas notas), soturno e enérgico, perfeito para um inimigo implacável. O compositor consegue um efeito de desumanização impressionante. As vítimas do tubarão não são pessoas, são carne. Qualquer um pode perecer. Adultos, crianças, cachorros. Basta estar na água. E isso é assustador.
Se, tecnicamente, “Tubarão” não envelheceu um só dia nesses 50 anos desde a sua estreia, em 20 de junho de 1975, podemos afirmar que, tematicamente, ganhou ainda mais força. Basta compararmos o negacionismo das autoridades da pequena cidade de veraneio diante da ameaça, priorizando a economia em detrimento da vida da população, com a pandemia de Covid-19. Lá como cá, políticos e empresários preocupados com o lucro, desacreditando a ciência, e com uma parcela das pessoas incapaz de postergar o prazer. O tapa na cara que Brody leva da mãe de uma das vítimas – mesmo sendo ele um dos “menos culpados” – é o que muitos que perderam parentes há cinco anos gostariam de fazer no mundo real com aqueles que zombaram, se omitiram e atrapalharam o combate à doença.
Por fim, “Tubarão”, para além das suas qualidades cinematográficas em si, inaugurou a era dos blockbusters. Com uma estratégia de publicidade massiva nas televisões, que, à época, ainda era incipiente, e o lançamento em um grande número de salas de cinema (mais de 400), tornou-se a maior bilheteria daquele e dos próximos dois anos, só sendo superado por outro “arrasa-quarteirão”, “Star Wars”. Não à toa, Spielberg passou a integrar a elite hollywoodiana, a ter carta branca em seus projetos, o que foi mais do que merecido.
Óbvio que há toda uma outra discussão ao fundo, com alguns cineastas, como Peter Bogdanovich, alertando que não havia mais ninguém interessado, a partir dali, a produzir filmes “menores”, “de arte”. Todos queriam fazer o seu próprio “Tubarão”. Bom, o fato é que, para o bem ou para o mal, a indústria em Hollywood havia mudado para sempre.
Onde assistir
- “Tubarão” está disponível para streaming no Telecine e para aluguel no Prime Vídeo, YouTube e Apple TV.
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