Videolocadora - Carlos Eduardo Vilaça

“Sherlock”, entre o clássico e o moderno

Uma das maiores qualidades de “Sherlock” é preservar em suas imagens na tela aquele cheiro de um livro guardado na estante, cujas páginas, quando folheamos próximo ao rosto, antes de começar a leitura, nos transporta imediatamente para o universo proposto pelo autor. É excitante, instigante. Ele te conquista, tem um charme irresistível. Exatamente como os episódios das quatro temporadas da série de Mark Gatiss e Steven Moffat, exibidos entre os anos de 2010 e 2017, e que revisitei recentemente.

Essa característica peculiar da série se deve à fusão de elementos clássicos das histórias de Arthur Conan Doyle, saídos direto da Era Vitoriana, com a era tecnológica em que vivemos. Uma novidade cujo resultado poderia ser desastroso, mas há um equilíbrio encantador entre o retrô e o moderno, seja na direção de arte, que mantém a aura mística e bela de Londres intacta, ou na própria personalidade dada aos personagens. E aqui entra a alma, de fato, da série. A interação, a química entre Sherlock Holmes e John Watson.

Normalmente, o fundamental é ter um vilão à altura do protagonista e dane-se o resto. Mas não nesse caso. “Sherlock” não funcionaria se não sentíssemos que essa amizade fosse para valer. É a relação entre eles que faz a trama andar. Um faria tudo pelo outro. Daí surge o conflito e os vilões podem, enfim, mover suas peças no tabuleiro. E Benedict Cumberbatch e Martin Freeman evocam perfeitamente a dualidade de seus personagens. O primeiro faz um Sherlock metódico, alheio aos dramas humanos, mas que por vezes revela em um simples olhar o quanto se importa; o outro, na superfície, exala humanidade com seu Watson, mas dá mostras de uma sociopatia latente em diversas ocasiões.

Dito isso, sim, Holmes tem um adversário de peso. Moriarty tem a sua mais assustadora encarnação nessa série. Ele nos mostra que a inteligência também pode ser brutal e a simples menção ao seu nome já nos faz temer pela vida dos heróis. A interpretação segura e jovial de Andrew Scott, que foge completamente do ar professoral que o imaginário popular atribuiu ao longo dos anos ao arqui-inimigo do detetive, é muito bem-vinda. É algo novo, que privilegia a ação ao mesmo tempo em que deixa o embate intelectual mais interessante, já que ambos vestem a capa da competitividade e têm que tomar muito cuidado para não serem traídos pela arrogância típica da juventude.

Para coroar, somos contemplados com episódios isolados, baseados em algumas das mais famosas histórias de Conan Doyle, como o ‘O cão de Bakersville’, que ganhou uma versão digna dos melhores filmes de terror psicológico do cinema (sim, filme, pois cada episódio possui 90 minutos de duração – são três por temporada (além de um especial), e com participações de nomes importantes dentro do cânone sherlockiano, como Irene Adler, rival e também interesse romântico do protagonista, a Senhora Hudson, o detetive Lestrade e Mary Watson.

Um detalhe importante é que o fato de que as duas primeiras temporadas de “Sherlock” sejam incrivelmente superiores, obras-primas para falar a verdade, joga contra as duas restantes, que parecem estar mais abaixo do que na verdade estão. Mas, pelo contrário, elas também são interessantes e mantêm uma lógica dentro do universo do personagem, seguindo e atualizando o material de Conan Doyle.

Esse fato de o cânone ser levado a sério é, além de admirável, essencial aos fãs das aventuras de Holmes. Pois, assim, mesmo que a narrativa tenha sido trazida para a Londres de hoje, cada detalhe da ambientação, do roteiro, dos diálogos e das interpretações nos transporta para os livros. Podemos, mais uma vez, sentir o cheiro das páginas a balançar à nossa frente e afirmar, sem dúvida, que este Sherlock é táctil, é de verdade.

E, como o próprio Mark Gatiss escreveu em sua apresentação para uma nova versão de “As aventuras de Sherlock Holmes”: “Gostaria de estar lendo estas histórias pela primeira vez. Se você nunca virou essas páginas sagradas antes, se nunca mergulhou num mundo de casas de ópio e padrastos satânicos, de pedras preciosas banhadas em sangue e vingativas sociedades secretas, eu invejo você. De verdade. Vai passar os melhores momentos da sua vida”. Vale para o livro, mas também para esta série.

ONDE ASSISTIR
  • “Sherlock” está disponível para streaming no Amazon Prime Video, Looke, Max e Now.

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