COMÉDIA DRAMÁTICA

“Reflexões de um Liquidificador”: não ser gente já é uma forma de ser feliz

Elvira e seu eletrodoméstico formam uma parceria improvável, lúdica e cheia de significado em "Reflexões de um Liquidificador".

Filme brasileiro de 2010 sai do lugar comum e surpreende o público - Foto: Divulgação
Filme brasileiro de 2010 sai do lugar comum e surpreende o público - Foto: Divulgação

“Pensar é moer. Moer é pensar”. Dar sentido à vida, às nossas ações, passa por um processo doloroso de autoconhecimento. É preciso perceber as coisas e outras pessoas ao nosso redor, e se debruçar com afinco sobre o seu significado. E, claro, lidar com as consequências de cada ato perpetrado a partir daí. O fato é que um mísero pensamento tem o poder de moer nosso cérebro, nos tirar o sono, a paz. Mas e o inverso? Ora, ele também é verdadeiro. Afinal, quando um Liquidificador adquire consciência, sua função primordial de moer ganha contornos filosóficos, com o tecido da realidade se desfazendo bizarramente diante de nós.

“Reflexões de um Liquidificador”, de André Klotzel, é um filme extremamente espirituoso e inteligente neste aspecto, pois brinca com esse conceito da tragédia humana, colocando personagens corriqueiros na paisagem urbana, com existências totalmente mundanas, no centro de uma “análise de botequim”. Sim, esta é a definição apropriada, já que seus conflitos e sentimentos viram objeto de estudo para um velho e combalido Liquidificador de uma lanchonete de periferia, que, após uma manutenção, desperta e passa a conversar com a sua dona, tendo, na maioria das vezes, um olhar cínico e desesperançoso sobre a humanidade. “Não ser gente já é uma forma de ser feliz”.

Selton Mello faz a voz do eletrodoméstico e se trata de um trabalho formidável. Nós compramos a ideia, embarcamos nesse mundo fantasioso. Você jamais pensaria que um Liquidificador teria tanta química com sua parceira de cena. No caso, a maravilhosa Ana Lúcia Torre, que interpreta Elvira. O flerte com a loucura está sempre presente nos seus olhares e trejeitos, mas mesmo assim ela consegue conquistar a simpatia do espectador. Muito disso se deve aos diálogos entre os dois. Eles são a alma do filme. O roteirista José Antônio de Souza acerta em cheio no tom, trazendo coloquialidade à frases filosóficas e profundidade ao cotidiano banal.

O filme é carregado de humor, mas bem distante do que costumamos ver no cinema brasileiro em geral. Não é aquele humor rasgado, de piadas prontas. Ele se assemelha bem mais ao humor britânico, com sarcasmo e ironias finas, repleto de momentos embaraçosos. Talvez essa escolha não fosse apropriada à primeira vista, já que a suspensão de descrença é fundamental aqui e não se entregar ao pastelão poderia prejudicar a experiência. Só que incrivelmente dá certo. O absurdo é visto com naturalidade, como única forma de expressão possível. Elvira e o Liquidificador são amigos. Simples assim. Aceite o mistério.

Essa trama delirante ganha uma nova camada de distorção da realidade e um punhado de morbidez quando Elvira mete a polícia no meio. Ela quer descobrir o paradeiro do marido, Onofre (Germano Haiut), que sumiu sem deixar rastro. O investigador encarregado do caso, com o peculiar apelido de Fuinha (Aramis Trindade), entra na história e eleva o grau de neurose e obsessão. É tudo tão surreal que, embora você até seja capaz de presumir o final, não consegue se desvencilhar da trajetória daqueles personagens. É nesse momento também que você percebe que a sanidade de Elvira pode até ser questionada, mas é o que menos importa. Voltaire tinha razão. “Somos todos malucos. Quem não quer ver malucos, deve quebrar os espelhos”. Ser gente pode ser complicado. Os liquidificadores é que são felizes? Pense sobre isso.

Onde assistir

  • “Reflexões de um Liquidificador” está disponível para aluguel e compra no YouTube e na Apple TV.

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