“Pobres Criaturas”, do cineasta grego Yorgos Lanthimos, apresenta referências de vários ramos da arte para contar de forma belíssima a história de uma jovem mulher trazida de volta à vida por um cientista. A mais óbvia, especialmente por habitar o terreno narrativo, é do campo literário. Afinal, se trata de uma adaptação do livro de Alasdair Gray, escrito em 1992 com clara inspiração em outra obra, o clássico “Frankenstein”, de Mary Shelley. Mas aqui existe uma subversão muito importante quanto às consequências da experiência com a Criatura.
Explico. Na obra de Shelley, o verdadeiro crime cometido pelo criador não foi ter “brincado de Deus”, mas ter abandonado a sua criação e a feito conhecer toda a dor, sofrimento e crueldade que o mundo é capaz de proporcionar a quem é diferente. Como resultado, temos uma espiral de violência, morte e amargura. Já para o “Monstro” de “Pobres Criaturas”, Bella Baxter (Emma Stone), a jornada é inversa. Como ela é uma mulher, toda essa opressão já vem de berço, de inimigos íntimos que desejam controlá-la por inteiro: seu corpo, opiniões, ideias e comportamento. E a implicação aqui é lidar cada vez mais com a sua impulsividade, liberdade irrefreável, amor, curiosidade e prazer pela vida.
A vida. Eis o tema central. Se no livro de Mary Shelley reverbera o pensamento de que “para examinar as causas da vida, precisamos primeiro entender a morte”, para Bella a vida sempre vem em primeiro lugar. Ela sempre acha que tudo pode melhorar e/ou ser melhorado. Assim, a vemos em vários estágios do seu desenvolvimento como pessoa, desde um cérebro infantil, ainda sem coordenação motora, passando pela descoberta da sua sexualidade, a crescente vontade em ver o mundo com os próprios olhos, até formar a sua complexa personalidade.
“Pobres Criaturas” é um filme mágico em seu cerne, feito para incomodar e causar estranheza, literal e metaforicamente falando, com a direção de Lanthimos realçando a todo o momento a nossa sensação de encantamento perante esse mundo, deformando a realidade e, de certa forma, expandindo-a, por meio do uso criativo da sua câmera, nos confundindo propositadamente com suas intenções. É um conto de horror? Uma ficção científica? Uma comédia? Sim, é tudo isso e mais um pouco.
Nem é preciso dizer que Emma Stone é a alma do filme. O seu trabalho de composição para Bella Baxter é hipnotizante, em uma mescla de naturalidade e teatralidade extremamente necessária para explorar a corporalidade da personagem. Vê-la aprender a andar e a falar, entre outros processos, tem, ao mesmo tempo, um ar cômico e perturbador, que nos prende à sua história. E a partir do momento em que Bella ganha consciência do mundo ao seu redor, especialmente através da sua própria revolução sexual, a atuação de Stone só faz crescer. Esse amadurecimento é explícito, impactante.
E que concepção visual! Pois o filme, que começa em um preto e branco de estilo neoclássico, de racionalidade científica, expressas na mansão de Godwin, com suas texturas, contrastes e bizarros animais híbridos, ganha uma profusão de cores abruptamente, com um “salto furioso” – literalmente, como vocês verão – a partir do seu segundo ato, com cenários, figurinos e fotografia acompanhando essa mudança de paradigma na vida de Bella. Daquele espaço restrito em que vivia, monocromático, para uma aventura pelo mundo em uma amálgama de estilos, do modernismo ao medieval, passando pelo retrofuturismo e, claro, sempre flertando com o surrealismo. É um deleite.
Nessa jornada, ao redor de Bella, orbitam figuras excêntricas e curiosíssimas, como o próprio cientista e seu criador, Godwin, que, fica subentendido, trata-se de uma versão do próprio monstro de Frankenstein original, pois em vários momentos ele cita as experiências que o pai realizou nele. Ou seja, o pai de quem ele tanto fala, possivelmente era o doutor Victor Frankenstein. E, se não for, fico com essa interpretação, pois é boa demais. Willem Dafoe faz uma composição interessante, contida, de homem da ciência, mas sempre transparecendo a ternura por Bella. E o que dizer de Duncan Wedderburn? O sujeitinho que vai do sedutor arrogante e irresistível ao mais completo bobalhão digno de pena, é interpretado de maneira visceral por Mark Ruffalo. Ele se entrega ao papel e parece se divertir a valer – bom, ao menos nos proporciona bastante diversão.
Toda a excentricidade dessa trajetória de Bella Baxter é cativante e a discussão que o filme levantou sobre a quantidade de cenas de sexo só comprova a sua relevância como obra de arte mediante o impacto em um público desacostumado a uma leitura crítica. Assim, por mais que estejamos rodeados pelo cinismo e amarrados hipocritamente pelo que a sociedade dita como comportamento aceitável, dentro e fora da tela, Bella está ali para nos mostrar que há espaço para questionar, pensar e evoluir.
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Onde assistir:
- O filme ainda está em cartaz nos cinemas
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