Edgar Allan Poe, em seu conto “O Demônio da Perversidade”, destaca que, em certas mentes, sob determinadas condições, torna-se completamente irresistível sucumbir à maldade. Trata-se de um impulso radical e primitivo. Talvez esta seja a melhor lente para se analisar Oswald Cobb, o Pinguim, protagonista da série homônima que chegou ao fim de seus oito episódios na última semana, com requintes de extrema crueldade.
A série é ambientada no universo de “The Batman”, após os acontecimentos do filme lançado em 2022, e mostra a ascensão ao poder do vilão, que busca rivalizar com as duas famílias mafiosas mais poderosas de Gotham City: os Falcone e os Maroni. Mas esqueça o herói, ele não dá as caras. Aliás, se algum desavisado assistir à série sem contexto – ou mesmo sem ter visto o filme – jamais iria perceber que existe por ali alguém combatendo o crime vestido de morcego. E isso é um ponto positivo.
“Pinguim” está mais ligada às características de “Família Soprano” e similares do que aquelas das histórias em quadrinhos. Aqui, afundamos de cabeça nas entranhas da máfia, da corrupção, do jogo sujo e da sobrevivência a qualquer preço. Há sentimentalismo também, claro que sim. Mas ele é perigoso demais. E não só para os personagens, mas também para o público, que se vê criando uma relação de empatia com seres brutos, desprovidos de compaixão, que a qualquer momento podem decepcionar – para dizer o mínimo.
Uma relação de amor e ódio
Contudo, parece mesmo ser inevitável essa relação de amor e ódio em “Pinguim”. Oswald, ou Oz, é um soldado raso, à margem das decisões, que, à primeira vista, não parece ser esperto o suficiente para levar adiante o seu plano de chegar ao topo da criminalidade. O seu arco de desenvolvimento nos revela frustrações, submissões e até fraquezas, como ao não matar Victor, o garoto que flagrou tentando roubar o seu carro e depois o ajuda a desovar um cadáver, dando-lhe uma oportunidade como parceiro no submundo. Além disso, ele cuida de Francis, a mãe doente, e sente-se vulnerável perto dela e por ela. Ou seja, Oz é um bandido, mas um bandido para quem é possível “torcer”.
Do outro lado, temos Sofia Falcone, recém-saída do hospício. Uma mulher que todos parecem temer e evitar. Conhecida como “A Carrasco”, é acusada de matar várias mulheres enforcadas. Ela tem um olhar fulminante, que exala insanidade, embora exiba sutileza e inteligência no modo de falar e agir. Porém, a morte de seu irmão, Alberto, herdeiro da família, desperta todos os seus gatilhos. E a sua busca pelo assassino será implacável. Pena para Oz que foi ele quem o matou, em um ato impensado, impulsivo, que revela também toda a sua insegurança, já que mudou/esqueceu seus planos a partir do momento em que a vítima apenas riu dele.
Inversão de expectativa
A partir daqui, a grande sacada da série é justamente esse jogo de gato e rato, a interação entre esses oponentes tão diferentes, e a inversão de expectativa. A cada passo que Oz dá rumo ao sucesso, temos uma revelação que nos coloca com um pé atrás em relação a ele. No começo são pequenas pistas da sua maldade intrínseca, um olhar, uma atitude, uma lembrança… A nossa confiança vai sendo testada. “Trememos com a violência do conflito que está sendo travado dentro de nós, o combate entre o definido e indefinido, a batalha da substância com a sombra. Porém, se a luta chegou a este ponto, lutamos em vão, porque a sombra triunfará”, escreveu Poe.
Por outro lado, vemos a cada novo episódio de “Pinguim” como Sofia foi “quebrada”, teve sua alma e coração partidos, e nos apiedamos. É um caminho teoricamente inverso. A única certeza é que a divisória entre luz e trevas é tênue e ambos, Oz e Sofia, estão de olhos vendados – seja por ambição ou vingança.
Farrell e Milioti dão show como Pinguim e Sofia
É bom frisar que a série nunca daria certo sem os atores adequados aos papéis principais. Sendo assim, Colin Farrell faz um trabalho minucioso de composição de personagem debaixo de camadas de maquiagem que o deixam irreconhecível. Ele consegue transmitir todos os maneirismos exigidos pelo Pinguim. O andar, óbvio, mas também, e especialmente, a sua dubiedade. A boca diz uma coisa e a expressão corporal o desmente. É para poucos. Já Cristin Milioti está nada menos que soberba, transitando entre momentos de fragilidade e demonstrações de força. Se os olhos de Oz são sempre vagos, os dela são autênticos, transparentes.
Ancorada por subtramas poderosas, “Pinguim” explora cada um de seus personagens e suas histórias de vida, suas tragédias pessoais, não deixando nada de fora. Inclusive, mostrando a dura realidade de uma inclemente luta de classes. Francis e Victor, claro, ganham mais tempo de tela por sua importância para o protagonista e são fundamentais para o desenrolar da trama e para a compreensão de que esta é uma viagem sem volta. Afinal, sabemos o fim: o Pinguim vai ascender. Mas nunca imaginávamos que ver como ele chegou até lá seria um processo tão doloroso, visceral e desprovido de humanidade. Um mergulho na mais completa escuridão.
Onde assistir
- “Pinguim” está disponível para streaming na Max.
Fale com o colunista
- E-mail: [email protected]
- Instagram: @carloseduardo.vilaca
- Bluesky: @carloseduardo.bsky.social