Videolocadora - Carlos Eduardo Vilaça

“Perseguidor Implacável” e o retrato de uma época

Entre meados da década de 1960 e início de 1970, a efervescência política e social tomava conta dos Estados Unidos: o movimento hippie, os protestos pelo fim da Guerra do Vietnã, a luta pelos direitos civis dos negros… A velha sociedade norte-americana, branca, abastada e extremamente reacionária, estava em pânico com o que eles consideravam um ponto de ruptura na ordem pré-estabelecida. Harry Callahan, um policial durão da cidade de São Francisco, surgiu, então, para “defendê-los”, na contramão do espírito da época, em um flerte fortíssimo com o fascismo, como foi considerado pela crítica em seu lançamento. E, sim, esse é um modo de ver “Perseguidor Implacável”, mas o filme de Don Siegel, de 1971, estrelado por Clint Eastwood, apresenta muito mais camadas.

No livro “Especulações Cinematográficas”, Quentin Tarantino destaca esse aspecto nitidamente conservador da obra, tematicamente falando, ao revelar que o próprio diretor temia ser julgado por seus pares, além de considerá-la racista pelas atitudes e métodos do protagonista. Embora Tarantino refute esses argumentos analisando exatamente todo esse contexto em que o filme estava inserido, não se pode esquecer que o vemos com os olhos de hoje. Não, de fato, “Perseguidor Implacável” não causa mais o mesmo impacto social. Basta saber que a partir dali as leis tornaram-se mais severas, pois até então não havia protocolo para se lidar com um serial killer, o que acabou, se não justificando, pelo menos amenizando bastante a sanha justiceira de Harry e o seu apelido, “Dirty” (aquele da polícia que suja as mãos).

Essa revisão é parte fundamental para se compreender o filme, pois quando Harry alveja um assaltante de banco e depois dele caído o encara para, sarcasticamente, soltar a clássica frase: “Eu sei o que você está pensando. ‘Ele atirou seis vezes ou só cinco?’ Bem, para falar a verdade, com todo esse alvoroço, eu meio que perdi a conta. Mas, sendo esse um Magnum 44, o revólver mais poderoso do mundo, que poderia explodir sua cabeça num instante, você tem que se perguntar uma coisa: ‘Me sinto com sorte?'”, ele, de fato, representa aquela camada da população cuja visão de mundo armamentista estava sendo ultrapassada e a reimpõe, triunfante. Potencial fascista à vista, como diria a crítica Pauline Kael, ainda mais em tempos de polarização política exacerbada.

Contudo, ao enfrentar o grande vilão, Scorpio, o paradoxo salta aos olhos. O personagem, baseado no famoso assassino do Zodíaco, foi criado para ser odiado pelo público, que certamente perdoaria qualquer comportamento antiético de Harry em sua caçada. Mesmo quando Harry nega seus direitos e chega a torturá-lo em um estádio para descobrir o paradeiro de uma adolescente sequestrada e à beira da morte, somos convidados a participar daquela sádica sessão, em uma sequência estranhamente bela, com a câmera se afastando para o alto, tornando visíveis as arquibancadas vazias, ocupadas apenas por nossos pensamentos confusos. A zona cinzenta se amplia consideravelmente.

Scorpio é quem move a trama com a sua crueldade e brutalidade. Se o impacto social não é mais o mesmo, a violência do filme permanece gravada em nossas retinas especificamente por causa de Scorpio. O ator Andy Robinson foi visceral. O ar de loucura estampado em seu olhar, cada fala é dita com prazer mórbido. Ele é um monstro. Está ciente disso e gosta muito de ser assim. A cena no ônibus escolar em que esbofeteia uma criança que chama pela mãe é de dar náusea. A sua motivação, oficialmente, é financeira. Cobra uma fortuna, em valores irreais, da prefeitura de São Francisco para não cometer seus crimes. Mas, sinceramente, é apenas uma desculpa. O jogo de gato e rato, o brincar com suas vítimas, a sensação de poder, essas são suas prioridades.

Mas de nada adiantaria toda essa discussão temática se o filme não funcionasse como um bom exemplar do gênero de ação. Não só funciona como é um dos melhores. Trata-se de um daqueles raros casos de título em português que não deixa mentir. Harry e Scorpio duelam do início ao fim de forma tensa e eletrizante. Um diretor menos experiente talvez tivesse passado do ponto. Mas Siegel desde a década de 1950 já comandava sequências de tiroteio, pancadaria e perseguições. E aqui ele se mostra em grande forma e faz um filme que até hoje não perdeu o seu vigor. Do sangue vermelho vivo da primeira vítima de Scorpio, passando pela fotografia de uma São Francisco mergulhada em sombras, cheia de cantos escuros e sujos, até a trilha sonora pulsante, ritmada e com caráter de urgência, tudo remete ao que de melhor o cinema hollywoodiano dos anos 1970 tem a nos oferecer. E isso é um grande feito.

ONDE ASSISTIR

  • “Perseguidor Implacável” está disponível para streaming na Max e para aluguel no Prime Video, Apple TV, YouTube e Google Play.

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