No mundo da espionagem, retratado ao longo da série 007, foram raras as vezes em que sobrou tempo para o aprofundamento de questões subjetivas de seus personagens. A pirotecnia das explosões, o balé violento das lutas e as perseguições alucinantes sempre dominaram as ações. Não em “Operação Skyfall”. Este exemplar da franquia mantém todos esses elementos mas, ao mesmo tempo, entrega uma trama intimista, que completa o processo de iniciação (ou seria reconstrução?) – que teve início em “Cassino Royale” – de James Bond, o mais famoso agente secreto do cinema para o século XXI, cujo arco mais recente foi interpretado, ao longo de cinco filmes, por Daniel Craig.
“Operação Skyfall” é o 23º filme da cinessérie, que, após um tempo longe dos streamings, está de volta completa ao MGM+, por um período limitado, a partir de 1º junho. Boa oportunidade para uma maratona. Assim, você poderá concordar ou discordar de mim quando digo que o filme de 2012 é, de longe, o melhor e um dos mais pessoais do agente 007.
Explico. Nele, temos um vislumbre do que significa, de fato, fazer parte daquele universo, que, a princípio, parece ser convidativo pelo tom excitante e glamouroso. Mas deixar-se encobrir pelas sombras que envolvem o trabalho não é tão fácil. Não há plenitude, há respiros. Permitir sentimentalismos e aproximações nesse sentido é certeza de dor e sofrimento posteriores. É uma vida sem pouso. Fincar raízes é um sonho distante para um futuro que talvez nem possa existir. Palavras como amor e felicidade não representam absolutamente nada e a vida deve ser encarada apenas com coragem, confiança e inteligência.
Em “Skyfall”, a relação entre Bond e M (Judi Denchi) é posta à prova, abalada que foi por uma decisão desprovida de sentimentos da chefe do MI6. Uma atitude correta no âmbito profissional, embora moralmente discutível. Mas não é isso que estava em jogo. Bond sabia das razões de M e não argumentaria de forma contrária. O problema foi a quebra de confiança, ela ter duvidado do seu potencial para resolver a situação. E esse é um dos aspectos mais interessantes da fase do 007 de Craig: como ele ainda estava sendo moldado em suas habilidades, o ego é o principal empecilho para Bond atingir o status desejado por M. Aprendizado, isso é o que move as ações. Tanto é assim que, lá na frente, ocorre uma inversão e M demonstra seu apoio ao pupilo, mesmo que ele não saiba do fato por ela.
É importante, portanto, observar a evolução do 007 em seu trabalho, resultado direto da relação entre Bond e M: a brutalidade e a impulsividade, que marcaram seus primeiros passos em “Cassino Royale” e “Quantum of Solace” deram lugar a um espião que tem frieza e discernimento para agir em situações de grande tensão. Some-se a isso o charme característico do personagem, que une virilidade e senso de humor, e vemos o James Bond clássico, à la Sean Connery, surgindo imponente na tela após uma preparação que durou três filmes. Assim, todas as críticas dirigidas a Craig em seu início foram para o ralo. A sua composição, analisando a obra como um todo, foi perfeita. No filme de 2006, ele realmente não era Bond. Não o que conhecíamos. Mas, aos poucos, assumiu brilhantemente a sua persona, neste e nos dois filmes seguintes (embora sem o grau de perfeição alcançado aqui).
Colabora também para esse clima de retorno ao Bond clássico as associações entre passado e futuro que permeiam “Operação Skyfall”. São novos tempos, vários personagens afirmam. Mas também batem na tecla de que resolver as coisas à moda antiga, às vezes, é a melhor opção. É uma dualidade instigante, sugerindo um embate e até mesmo uma convivência pacífica entre esses opostos. Por que não apetrechos tecnológicos de última geração, totalmente funcionais e plausíveis, e uma caneta explosiva ou metralhadoras que saem dos faróis de um Aston Martin? Um jogo de pés no chão x megalomania.
A megalomania, aliás, não passou sequer perto do vilão Silva, de Javier Bardem, que, assim como Bond, também está envolvido em uma cruzada pessoal e não quer conquistar o mundo ou ganhar bilhões de dólares, embora tenha todos os meios para conseguir tais objetivos se os tivesse. Mas não, sua ambição é mais simples: vingança. Por isso mesmo e pela caracterização, ao mesmo tempo, afetada e contida de Bardem, este vilão soa bem mais ameaçador do que muitos dos seus pares durante os anos. Sentimos a vulnerabilidade dos personagens, tememos por eles. Quando Bond diz: “Uma tempestade está a caminho”, sabemos que não se trata de um simples fenômeno natural, mas de uma chuva de incertezas quanto ao destino de todos.
Ponto também para o diretor Sam Mendes, que não é um mero coreógrafo de cenas de ação, ainda que as execute com extrema competência. Mendes imprime a sua marca e, quando possível, alia a visão comercial com a artística, como podemos notar na belíssima luta em contraluz de Bond com um de seus oponentes. O efeito estético foi sensacional e, o mais importante, orgânico à narrativa, não foi um exercício de estilo, servia ao propósito do filme. E, como já foi dito, por ser um filme intimista, que paradoxalmente busca as raízes de um personagem sem raízes, Mendes tem a chance de explorar esses polos em vários momentos memoráveis.
Talvez, o que melhor resuma “Operação Skyfall” e a iniciação/retorno ao Bond clássico seja a canção-tema de Adele: “Deixe o céu cair. Quando desmoronar estaremos de pé, orgulhosos. E iremos encarar a tudo juntos…”. Um personagem com a marca da reconstrução, que busca o seu lugar no novo milênio, mas que não renega tudo o que já foi vivido até então. Não é à toa que o tiro para a câmera, um dos símbolos da série, sempre apresentado no início da projeção, tenha sido deixado para encerrar o filme. É um sinal de que tudo estava apenas (re)começando.
Onde assistir
- “Operação Skyfall” e os outros 24 filmes da franquia 007 estão disponíveis para streaming a partir de 1º de junho no MGM+. No Brasil, o serviço pode ser adquirido como uma assinatura adicional via Prime Video.
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