“O Homem do Sputnik” representa a essência das chanchadas ao mesclar de forma perfeita a sátira inteligente com um humor ingênuo, bem popular. O filme de 1959, dirigido por Carlos Manga, é também um muito bem feito contra-ataque brasileiro aos estereótipos estrangeiros, ao olhar de cima, preconceituoso, que os países de “primeiro mundo”, desde sempre, direcionam ao Brasil. Especialmente em um período de grande polarização e convulsão mundial. Afinal, em plena Guerra Fria, o cinema feito por essas bandas mandava o recado: a soberba de vocês mascara o fato de que, no fundo, não passam de uns trouxas.
É importante notar que, se uma das características mais marcantes das chanchadas, os números musicais, não está verdadeiramente presente no filme, é porque os espiões dos Estados Unidos, União Soviética e França são colocados metaforicamente para dançar pelo simplório Anastácio Fortuna (Oscarito), em um ritmo frenético e extremamente espirituoso. Talvez tenha sido este aspecto, inclusive, que fez com que “O Homem do Sputnik” fosse um sucesso de bilheteria e passasse por cima da aversão dos críticos da época, que imputavam às chanchadas (nomenclatura que pode ter origem espanhola e significar “porcaria”) uma pecha de produções vulgares, cópias baratas de filmes de outros países.
Aqui, isso não tinha razão de ser. Muito pelo contrário. Não há a clássica exaltação a Hollywood, comum no gênero, a que muitos torciam o nariz. Mas, sim, a preferência por uma representação tipicamente brasileira. Ora, o casal protagonista vende ovos na zona rural. Mais claro do que isso, impossível. Assim, tudo começa quando, em uma noite tempestuosa, o Sputnik cai no quintal de Anastácio. Ele e sua esposa, Cleci (Zezé Macedo), ficam cientes do que se trata na manhã seguinte, ao lerem no jornal sobre o acidente com o satélite russo e identificarem o mesmo objeto na fotografia que foi publicada na reportagem. A partir daí, Anastácio tentará negociar a sua descoberta para poder levantar fundos e consertar o seu galinheiro, danificado após a queda. A notícia corre o mundo e desperta a cobiça das super potências, que mandam agentes ao Brasil para botar as mãos no artefato.
A maioria dos personagens desfila como se estivesse em um carro-alegórico. A ridicularização de todos ali não é sutil, é descarada. Embora mantenham a ignorância típica de uma elite que só vê e se importa com seus próprios interesses. Até mesmo Cleci, deslumbrada com sua entrada repentina na alta sociedade e com a atenção recebida, não percebe o óbvio da falsidade e cafonice. Além, é claro, da falta de ética, melhor representada pelo jornalista Alberto (Alberto Pérez). Por outro lado, Nelson (Cyl Farney) tenta balancear essa equação. Ele é “certinho”, dono de um idealismo moral, mas que, no meio de tanta ambição e egoísmo desenfreados, consegue soar bastante adequado. Ainda mais porque a bússola do filme é mesmo Anastácio. O maniqueísmo que o cerca é proposital para que ele possa andar sobre essa linha, ora pisando do lado de lá, ora do de cá. Sempre tirando sarro de todo mundo – junto com o público, obviamente.
As vítimas preferenciais são as comitivas internacionais. Os russos, com seus uniformes militares iguais, todos carecas, paranóicos e com um gosto pelo drama – não à toa se chamam Karamázov. Por sua vez, os estadunidenses são retratados como infantilóides, egocentristas e burros de dar dó, sem um pingo de conhecimento geográfico, arrotando preconceito. Nesse sentido, o agente interpretado por um jovem Jô Soares é excepcional e solta pérolas hilárias e grotescas. Enfim, os franceses, metidos a besta, convencidos da sua superioridade por meio de refinamento e poder de sedução. A maior arma deles é Bebê (Norma Bengell), uma versão caricata de Brigitte Bardot, que vai “tentar” Anastácio até o fim para conseguir o sputnik.
Como se vê, o roteiro é ambicioso e o filme é tecnicamente muito bem produzido, principalmente em relação à fotografia e à direção de arte, que conseguem transpor um tema de caráter global, então atual e pertinente, como a Guerra Fria, para uma ambientação local. Não é algo simples de se fazer, embora pareça. Mas o diretor Carlos Manga, um dos grandes nomes das chanchadas, e, claro, Oscarito, um dos símbolos dessa cena cultural, usam esse conhecimento de causa para subverter a lógica e inserir “O Homem do Sputnik” em um contexto nacional, criativo e cômico – tanto na estética quanto no conteúdo. Muitas palmas!
Onde assistir
- “O Homem do Sputnik” está disponível gratuitamente no YouTube.
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