O filósofo inglês Bertrand Russell, em sua obra “Por que os homens vão à guerra”, de 1916, propôs uma reflexão sobre o que levava a humanidade a um estado de permanente beligerância e o que fazer para evitar a sua entrada em conflitos. Para o vencedor do prêmio Nobel de Literatura, a partir do momento em que temos pessoas reprimidas socialmente, vivendo sob o excesso de razão e exercendo um sentimento de posse, as inclinações primitivas e hostis tendem a surgir mais facilmente. Seria preciso, portanto, seguir um caminho mais natural, de viver apaixonadamente, promover a criatividade humana e o respeito às liberdades individuais. Só assim, os impulsos de guerra e matança seriam contidos.
Em “Doutor Fantástico” (1964), Stanley Kubrick brinca justamente com essa ideia, de homens que botam o mundo em risco por causa da sua masculinidade frágil e o desejo de mostrar quem tem a arma maior. Sim, a frase tem duplo sentido, pois assim é o filme. Um primor do duplo sentido. Cada detalhe tem um pé no lascivo. A começar pelo nome de alguns personagens, como o General Turgidson (referência ao órgão sexual masculino) e o embaixador Sadesky (uma homenagem a Marquês de Sade), além de soldados folheando uma Playboy e a sugestão de colocar dez mulheres para cada homem em cavernas após um hipotético juízo final para a preservação da espécie humana.
O próprio mote do filme passa por essa linha de raciocínio. Quando o General Jack D. Ripper (alusão a Jack, o Estripador) ordena um ataque nuclear à União Soviética, ele o faz porque acredita em uma teoria da conspiração na qual comunistas estariam adicionando flúor na água dos norte-americanos com o intuito de “amansá-los”, torná-los fracos. Sua intenção, assim, seria preservar os seus “preciosos fluidos corporais”. Só que lá na frente, ele afirma que parte da sua estratégia de preservação é negar seus fluidos, sua essência, inclusive às mulheres. Em outras palavras, por causa de uma subentendida disfunção erétil, General Ripper teve que provar sua “potência” ao mundo, exterminando-o.
Como só Ripper possuía o código para barrar o ataque, entram em cena os demais personagens, que vão tentar a todo o custo salvar a situação. O grande destaque aqui é para Peter Sellers, que interpreta três personagens: o presidente dos Estados Unidos, o Capitão Mandrake e o Doutor Fantástico, que dá nome ao filme, um cientista alemão especialista em armas. Sellers faz um trabalho de composição tão meticuloso para cada um deles – dos trejeitos alucinados de Fantástico com a sua mão que tem vida própria e faz saudações nazistas, ao estilo comedido do capitão britânico -, que dificilmente você notará que se trata do mesmo ator. Coisa de gênio.
O filme segue três núcleos: a tentativa do Capitão Mandrake em dissuadir o General Ripper e fazê-lo sustar o ataque; os soldados do avião bombardeiro que recebeu a ordem de ataque; e os políticos e demais generais na Sala de Guerra, totalmente desesperados discutindo a situação. É interessante notar que o humor em “Doutor Fantástico” raramente é escrachado. Ele vem do ridículo das atitudes e da forma de pensar de todos ali. Chega a ser extasiante, pela forma como embarcamos no absurdo, ver aqueles homens totalmente desprovidos de noção e pensar em como chegaram até ali, em como podem ser estes seres esdrúxulos os que têm poder de decisão sobre a vida e a morte. Mas também preocupante, pelo paralelo que existe com a realidade, afinal, a política retrógrada, ultraconservadora e hipócrita tem crescido no mundo todo. Passamos por uma experiência dessa no Brasil há pouco tempo, e os seus tentáculos ainda são bem visíveis.
A frase mais famosa do filme, com justiça, acontece quando Turgidson e Sadesky se engalfinham. O presidente os separa com a pérola: “Senhores, vocês não podem brigar aqui, isto é a sala de guerra!”. Ela resume à perfeição o tom caricatural e sarcástico que caracteriza a obra. Afinal, as potências mundiais se armaram até os dentes, mas usar essas armas decretaria o fim da vida na Terra. Não há como ser mais irônico do que isso. Dessa forma, a máquina do juízo final, proposta por Kubrick – em caso de um ataque nuclear, ela seria ativada e acabaria com o mundo – nada mais é do que um espelho da ignorância humana e seu prazer pela destruição.
Assim, quando a bomba é finalmente lançada ao alvo, numa cavalgada exuberante protagonizada pelo Major T.J. Kong, a explosão e a nuvem atômica vêm como um poderoso orgasmo embalado pelos versos “Nos encontraremos novamente / Não sei onde / Não sei quando / Mas eu sei que nos encontraremos novamente, em algum dia ensolarado / Continue sorrindo até o fim / Assim como você sempre faz / Até que o céu azul afaste as nuvens escuras para longe”. Sim, porque o mundo pode ter acabado, mas o que importa é a satisfação alcançada.
ONDE ASSISTIR
- “Doutor Fantástico” está disponível para streaming na MAX e para aluguel na Claro TV, Amazon Prime Video, Apple TV e Microsoft Store.
FALE COM O COLUNISTA
- E-mail: [email protected]