Videolocadora - Carlos Eduardo Vilaça

“Dois caras legais” abraça a diversão do início ao fim

O conceito dos filmes “buddy cop” não é novo, tendo origem no mestre japonês Akira Kurosawa e o seu “Cão danado”, de 1949. Claro, um pioneirismo que não trazia as explosões e o humor a que o cinema norte-americano nos acostumou anos mais tarde, especialmente a partir da década de 1980. Mas as bases fundadoras do subgênero estão ali naquele filme com dois detetives japoneses de personalidades distintas que precisam unir forças para desvendar um caso complicado. E esse é talvez o único ingrediente imutável da fórmula até os dias de hoje: a química entre os protagonistas é fundamental para o filme funcionar. O que “Dois caras legais” tem de sobra.

Russell Crowe e Ryan Gosling são perfeitos um para o outro como Healy e March, respectivamente. O primeiro interpreta o seu já tradicional casca-grossa, que, aqui, é ex-alcoólatra e segue um código de conduta próprio; o outro, com mais predicados artísticos, rouba a cena como um fracote beberrão, que dá gritinhos descontrolados e tenta se dar bem em qualquer situação. Eles simplesmente dão liga durante todo o já conhecido processo de “estranhamento – união – amizade”. O que Crowe não tem de timing cômico, Gosling exibe em abundância, e essa discrepância torna tudo ainda mais delicioso de se assistir, em um exercício de vergonha alheia hipnotizante.

O fato de “Dois caras legais” se passar na Hollywood da década de 1970 traz um cenário perfeito para a escalada da loucura – no melhor sentido da palavra. Tudo é muito colorido e extravagante, dos figurinos e direção de arte (a festa na mansão, com o aquário gigante repleto de sereias, além dos modelos pintados de ouro, é sensacional) à trilha sonora maravilhosa, com direito a Bee Gees, Temptations, Kiss, Earth, Wind and Fire e até Garota de Ipanema. Características que casam com uma trama, no mínimo, delirante, que envolve a morte de uma atriz pornô, um possível complô governamental, ativistas ambientais, um assassino implacável, a indústria automobilística, uma fita misteriosa e outros detalhes de um rico e, ok, um pouco confuso universo. Mas, ei, eram os anos 70, não exija tanta linearidade.

Shane Black, que escreveu e dirigiu o filme, tem no currículo nada menos do que o roteiro de “Máquina Mortífera”, ou seja, conhece muito bem os meandros do subgênero e sabe como brincar com os clichês e equilibrar o seu trabalho entre a comédia e o clima noir. Afinal, não basta brindar o público com uma metralhadora de piadas – o que ele faz com bastante êxito, diga-se. A investigação em si também é bastante curiosa de acompanhar na sua excentricidade. E mais do que isso. Black entende que, como já citado, a alma de um “buddy cop” é o relacionamento entre os personagens. Então, partindo dessa regra básica, ele adiciona um terceiro elemento que faz toda a diferença: Holly, a filha pré-adolescente de March.

A garota, interpretada por Angourie Rice, é uma graça. Ela faz não apenas o contraponto aos dois machões como pode ser vista até mesmo como um alter-ego do próprio espectador, que tenta se situar em meio àquele caos narrativo, dando a ele algum sentido, um pouquinho de bom senso. Espirituosa e inteligente, Holly claramente se adaptou ao mundo do pai, contudo mantém sua essência infantil. Ela é uma criança e o filme, espertamente, aqui e ali, não nos deixa esquecer desse detalhe, evitando assim uma moralidade que poderia soar artificial. Não, se trata tão somente de uma inocente vivendo em um mundo cínico e perigoso.

Na época do seu lançamento, em 2016, “Dois caras legais” sofreu bastante com a concorrência dos filmes de super-heróis que estavam em cartaz e passou praticamente despercebido nos cinemas. Tal fracasso inviabilizou a produção de possíveis sequências, o que foi uma pena, pois o seu potencial como franquia era gigantesco – mantidos os altos níveis de diversão e violência, além da dinâmica de família disfuncional. Isso significa dizer que Shane Black conseguiu, ao menos, oxigenar com sucesso o subgênero. Quem sabe ele sinta saudades e queira revisitá-lo um dia ao lado de Crowe, Gosling e Rice?

ONDE ASSISTIR

  • “Dois caras legais” está disponível para streaming na Netflix, além de aluguel/compra no YouTube, Amazon Prime Video, Apple TV e Google Play.

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