Há muito o que perceber em “Disclaimer”. Os detalhes se escondem em certos olhares, silêncios ou atitudes e mudam completamente a percepção da história que está sendo contada. Para se ter uma ideia, por vezes, a eloquência de um discurso, de um ponto de vista, é tamanha, que verdades e mentiras se confundem, passam a ser circunstanciais. O que vale é a narrativa em si. A forma sobre o conteúdo. E o mais curioso é que, paradoxalmente, isso só eleva o tema da minissérie de Alfonso Cuarón: a oposição entre ficção e realidade, e como cada pessoa enxerga a vida ao seu redor.
O ponto de partida da trama é a publicação de um livro com a seguinte mensagem – ou disclaimer, para usar o termo apropriado e que justifica o título da minissérie – antes do início da leitura: “Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas não é mera coincidência”. Esse livro, em princípio, traz fatos do passado de Catherine Ravenscroft, vivida por Cate Blanchett, que podem destruir a sua reputação como jornalista premiada, além, claro, de abalar as estruturas da sua família.
“Disclaimer” pode parecer um pouco confusa no início, pois vagueia entre o presente e o passado, nos jogando informações e personagens aleatoriamente, sem muitas explicações. Mas isso é proposital. É como memórias se formando em nossa mente, um pensamento sendo organizado. O objetivo é que, quando as peças se juntarem, o panorama seja, de fato, impactante. E a meta é alcançada. Ao final do primeiro dos sete episódios, somos tragados por aquele universo, cujos personagens nos despertam sentimentos dúbios, ora de compaixão, ora de repulsa.
“Disclaimer” é uma obra de extremos
O livro em questão foi escrito por Nancy Brigstocke (Lesley Manville), sendo descoberto em uma gaveta por seu marido, Stephen (Kevin Kline), após a sua morte. Nele, junto com fotos sensuais, constam revelações de um caso que o filho de ambos, Jonathan (Louis Partridge), teve com Catherine em uma viagem de férias no sul da Itália, que culminou em um desfecho trágico. Stephen, a partir de então, vai em busca de vingança contra Catherine, enredando seu marido (Sacha Baron Cohen) e o filho (Kodi Smit-McPhee) em uma teia de intrigas.
É interessante notar como a minissérie vai de um extremo a outro para dar o efeito adequado às lembranças e sentimentos dos personagens. Assim, na fotografia de Emmanuel Lubezki, por exemplo, ao mesmo tempo em que o passado é pintado com cores exuberantes e convidativas, temos uma Londres opaca e cinzenta a guiar (ou desguiar) os personagens no presente. Outro aspecto que também segue nesta linha são as reações dos atores, que vão do minimalismo ao quase caricatural. Kevin Kline, em especial, vai de um abatimento profundo e consternado à expressões diabólicas, cartunescas até.
Cate Blanchett brilha em todos os momentos de “Disclaimer”
Mas “Disclaimer” pertence, de fato, à Blanchett. Conseguimos enxergar na tela o mundo de Catherine ruindo através das feições da atriz, de seus tremores, da fala embargada e desconexa de quem antes demonstrava total domínio de si. Não há respostas rápidas ou fáceis em discussões travadas. Ela simplesmente perdeu o foco após a leitura do livro e das investidas de Stephen. Termos uma narradora explicitando o estado de espírito dos personagens quebra um pouco o ritmo, mas nada grave. Mais importante: a oposição com a versão jovem e predadora de Catherine, interpretada por Leila George, na visão de Nancy, eleva o suspense e nos faz caminhar sobre uma linha tênue a favor e contra a personagem.
Cuarón consegue, portanto, abordar vários temas em sua minissérie, tendo como fio condutor essa reimaginação do passado, as lentes e filtros pessoais que usamos para contar uma história. “A recordação é uma traição à Natureza”, já dizia Fernando Pessoa. Pois cada um tem a sua própria visão de mundo, suas particularidades e até pecados, o que faz com que se mude constantemente uma narrativa. Dessa forma, o terreno se torna fértil para discussões sobre machismo, vitimização, maternidade e até a cultura do cancelamento.
Claro que o formato ajuda, pois sete episódios cobrem bem melhor as nuances de “Disclaimer”, que é baseada na obra de Renée Knight, do que se a adaptação fosse feita em um filme de duas horas, por exemplo. Principalmente porque a não-linearidade é fundamental. Precisamos nos perder nas memórias dos personagens, viver naquelas lacunas entre a realidade e a ficção. Neste caso, quanto mais perto da literatura onírica nos mantivermos, mais impactados por esse thriller psicológico seremos.
Onde assistir
“Disclaimer” está disponível para streaming na Apple TV.
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