
O crítico Gene Siskel usou uma frase que gosto bastante para avaliar “Butch Cassidy e Sundance Kid”. Ele escreveu, por ocasião do lançamento do filme de George Roy Hill, em 1969, que se tratava de uma história “fofa demais para ser crível”. E, sim, ele estava certo, mas divergimos em um detalhe fundamental. A leitura de Siskel é pejorativa. Especialmente levando em consideração que se trata de um faroeste. Bem diferente da minha visão, que considero esta característica uma grande qualidade e a principal razão do seu charme atemporal. Até porque disfarça e torna mais palatável o sabor agridoce da passagem do tempo.
Esse tom de galhofa, quase caricatural, de fato, não era usual em tramas ambientadas no Velho Oeste, marcadas pela violência e crueza. Mas é um revisionismo que simplesmente funciona. Não há como não se divertir com as desventuras dessa dupla de foras da lei que vê o mundo ao seu redor evoluir sem conseguir acompanhá-lo. A cena em que eles caem em si e percebem que não há como mudar de vida e tornarem-se honestos, já que não sabem fazer outra coisa, é brilhante. Ela ressalta uma suposta ingenuidade de Butch e Kid, um traço de personalidade inesperado em bandidos. A sociedade é cruel por excluí-los, por não aceitarem mais serem vítimas, os colocarem na mira dos rigores da lei. É de um cinismo arrebatador.
Claro, colabora para esse resultado o carisma das duas super estrelas que protagonizam o filme. Paul Newman (Butch) e Robert Redford (Kid) têm uma química difícil de superar, seja na troca de farpas entre os seus personagens ou na amizade sincera que nutrem um pelo outro. “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”, não? E eles são extremamente humanizados e espirituosos. Podem assaltar um banco aqui, explodir um vagão de trem ali, mas sabem valorizar afagos e momentos de leveza. Inclusive, a presença de Etta, interpretada por Katharine Ross, é essencial ao ressaltar ainda mais esse aspecto familiar, de ‘bandidos com coração”.
De qualquer forma, é comum uma sensação de estranheza emergir nessas horas. O filme todo, aliás, está calcado em um anacronismo que tira o espectador da zona de conforto, deixa-o inquieto sem saber o motivo. Tem humor, risadas, mas é nítido que nos encaminhamos para o fim. Quando Butch anda de bicicleta ao som de “Raindrops keep falling on my head”, é basicamente um libelo à liberdade de ser quem ele é, tentando dominar a modernidade que se aproxima velozmente. Porém, cair no chão e se ralar é uma possibilidade bem real, embora ele a descarte. “Eu não sou de chorar” e “Nada me preocupa”, dizem alguns dos versos da canção. Nada de novo sob o sol, afinal, o otimismo de quem acredita que escapará da morte indefinidamente é inerente às lendas dos pistoleiros.
Não é à toa que o filme traz o aviso de que “A maior parte do que se segue é verdade”. Porque detalhes fazem a diferença em histórias como essa em que o mito é bem mais interessante do que a realidade. Afinal, quem quer saber se Butch e Kid conseguiram passar um bom tempo na legalidade, administrando uma fazenda? Chato. Ou então que a perseguição implacável que sofreram não existiu, já que, aparentemente, escapar foi uma missão bastante tranquila? Nem pensar.
Por isso Nelson Rodrigues esculachava os “idiotas da objetividade”. Ele tinha um ponto. Definitivamente não estou entre eles e digo mais: em minha opinião, não houve cerco que Butch Cassidy e Sundance Kid não conseguissem furar. Fecho os olhos e faço como Etta: “Eu farei tudo o que vocês me pedirem, exceto uma coisa: não vou assistir a morte de vocês”. Assim, eu escolho acreditar que eles certamente viveram para lutar mais um dia incontáveis vezes.
Em tempo, revi o filme para escrever este texto em homenagem a Robert Redford, que morreu no último dia 16, aos 89 anos. Ator, cineasta e fundador do Festival de Cinema de Sundance, ele impulsionou o fazer cinematográfico com criatividade, respeito e, acima de tudo, amor à arte. O seu legado é eterno.
Onde assistir
- “Butch Cassidy e Sundance Kid” está disponível para streaming na Disney+.
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