Há algum tempo, um tio, que morava no Rio de Janeiro, ao tentar argumentar sobre como “não existiu ditadura” no Brasil, dizia que andava tranquilo pelas ruas. Até jogava vôlei na praia, vejam só. E que era só “não se meter em coisa errada” que estava tudo certo. Fiquei incrédulo. Como devia ser agradável para ele se isolar do mundo ao redor. Como cantou Erasmo, um dos “tantos por aí”, que simplesmente abstraíam os horrores do período, pois estes não lhe diziam respeito devido suas condições abastadas. Sorte que nem todos pensavam assim. “Mas estou envergonhado / Com as coisas que eu vi / Mas não vou ficar calado / No conforto, acomodado / Como tantos por aí”.
Lembrei disso logo na abertura de “Ainda estou aqui”. O calor da praia, das pessoas, os sorrisos. O tom sépia da fotografia, que remete a boas lembranças. Sentimo-nos não só acolhidos, mas protegidos por uma sensação de nostalgia. O que poderia haver de errado em um ambiente assim? A resposta está nos detalhes. No som de um helicóptero, em um caminhão militar passando e, especialmente, no olhar de Eunice Paiva. Em princípio, alerta. Depois, assustado, sofrido. Por fim, resiliente.
“Ainda estou aqui” é um filme com muitos méritos. Cinematograficamente falando, mas também em sua função social. “Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado”, já dizia a historiadora Emilia Viotti da Costa. Assim, o filme de Walter Salles joga luz em um episódio nefasto dos anos de chumbo do país, que tantos tentam varrer para debaixo do tapete. E o melhor: o faz de forma tocante, de modo que podemos, de fato, compartilhar a angústia, o aperto no peito vivenciado por aquelas pessoas.
O filme nos apresenta à família Paiva – Rubens, Eunice e seus cinco filhos. Eles vivem à beira da praia, no Rio de Janeiro, em uma casa sempre de portas abertas para os amigos. Mas, no início da década de 1970, a ditadura ficava a cada dia pior, e Rubens, ex-deputado, cassado por ocasião do golpe militar, é levado por militares à paisana e desaparece. Preservar a história é importante, mas saber como contá-la também. E Salles sabe nos envolver. Há um longo prólogo antes de chegarmos ao ponto central da narrativa em que somos inseridos no cotidiano dos Paiva. Nos afeiçoamos a eles, queremos estar ali naquela sala, ouvir aqueles discos, bater um papo, jogar gamão ou brincar com o Pimpão, o cachorrinho da família. Dessa maneira, quando a violência sofrida por eles finalmente acontece, ela nos atinge em cheio, na alma.
Não é só a condução da narrativa a responsável por esse êxito. Mas, principalmente, o elenco. De fato, Fernanda Torres merece toda a atenção que está ganhando mundo afora. Ela, a quem nos acostumamos em papéis expansivos na TV – embora tenha uma carreira sólida e diversa no cinema, que deve ser igualmente reverenciada -, faz da economia, da sutileza, a sua principal característica aqui. A força não está nos gestos ou nas palavras. Está no olhar. Através dele, Fernanda consegue transmitir todo o sofrimento de Eunice. Na cena em que leva os filhos para tomar sorvete, tentando aparentar uma normalidade, e vê uma família completa na mesa ao lado, a interpretação da atriz é de uma potência que poucas vezes vi numa tela de cinema.
Mas não é só ela. Selton Mello, como Rubens Paiva, se transforma naquela figura masculina que existe em praticamente toda família brasileira. Seja um pai, um avô… Bonachão, amoroso. O fato de ser politicamente consciente e se engajar contra a ditadura só o engrandece. Esses seus atos de resistência no filme, cartas para familiares de exilados políticos, – que, claro, não passaram despercebidos por Eunice – podem ser considerados como quase minimalistas, em mais uma escolha acertada de roteiro e também de interpretação de Mello e Torres, pois revela o cuidado e a tensão vigentes na época. A “saída de cena” de Paiva, na atuação de Selton Mello, é, desde já, um dos grandes momentos do cinema. E não só brasileiro.
Destruir vidas era uma das especialidades da ditadura. E o passeio que Salles faz na casa vazia dos Paiva retrata bem o aspecto cruel daqueles dias de horror. Mas não, eles não venceram. Eunice é o símbolo de uma resistência que proliferou e culminou, mais tarde, na queda do regime. O sorriso dela e de seus filhos na foto para a revista é uma declaração de que seu espírito não foi quebrado, que sua luta estava só começando e que a memória de Rubens Paiva seria, sim, honrada. O que foi comprovado, mais tarde, nas duas passagens de tempo, e suas conquistas: a certidão de óbito do marido e o crescimento de sua família, que permanece unida – com direito a uma participação comovente da gigante Fernanda Montenegro, que, mesmo calada, grita. Mas grita tão alto que nos estremece.
“Ainda estou aqui” faz pensar no erro capital que foi anistiar os crimes contra a humanidade ocorridos na ditadura. Não punir os torturadores e assassinos, inclusive os de Rubens Paiva, abriu brecha para discursos enviesados que temos hoje, tentando reescrever o período com tintas mais brandas. É nessas horas que a frase “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo” ganha mais significado. É por isso também que aqueles que flertam com o fascismo não suportam qualquer forma de Arte. Pois esta tem o poder de preservar a memória, ser um meio para a compreensão da nossa história. Nesse sentido, “Ainda estou aqui” é um belo exemplo. Uma aula de história e de cinema.
Onde assistir
- “Ainda estou aqui” está em cartaz no cinemas.
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