CLÁSSICO DO CINEMA

A síntese do horror no Brasil: “À meia-noite levarei sua alma” completa 60 anos

Mergulhe no terror de À meia noite levarei sua alma, clássico de José Mojica Marins, lançado em 9 de novembro de 1964.

José Mojica Marins como Zé do Caixão. Um legado inestimável para o cinema brasileiro e mundial - Foto: Divulgação
José Mojica Marins como Zé do Caixão. Um legado inestimável para o cinema brasileiro e mundial - Foto: Divulgação

Deitado na grama úmida, ele podia enxergar a noite de céu estrelado que se desnudava entre os galhos das árvores, emprestando um ar soturno à cena, como as vistas nos clássicos filmes de terror dos anos de 1930, do Drácula de Lugosi ao Frankenstein de Karloff. Demorou um pouco para perceber que não conseguia fazer movimento algum. E tal percepção veio quase simultaneamente à noção de que não estava só.

Um vulto na escuridão o acompanhava. Tentou falar, gritar, se levantar, porém, de nada adiantou. Só exauriu ainda mais as suas já debilitadas forças. Quando as sombras se dissiparam, a visão tornou-se demasiadamente aterradora.

O cenário era um cemitério e, à sua frente, estava ele próprio, mas com sutis e fundamentais diferenças, como a indumentária preta dos coveiros e os olhos, ah, os olhos… O demônio ali habitava e partiu para cima dele. Arrastou-o pelos braços entre sepulturas e o jogou dentro de uma cova cuja inscrição na lápide não deixava dúvidas: “José Mojica Marins”.

Quando acordou, em pânico e empapado de suor, Mojica levou algum tempo para assimilar a experiência e todo o simbolismo nela contida. Não foi um mero pesadelo. Foi uma celebração da morte e do surgimento de uma nova vida. Naquela madrugada gélida de 1963, nascia Zé do Caixão, o personagem que o definiria para sempre. As imagens macabras com as quais sonhara eram claras agora: era o destino da criatura subjugar o criador e tomar definitivamente o seu lugar no imaginário popular a partir da produção de “À meia-noite levarei sua alma”.

Os percalços da produção

O caminho para a ascensão de Zé do Caixão era árduo. Mojica, que acumulava fracassos em suas empreitadas cinematográficas até então – embora no seu amadorismo já transparecesse certa aptidão para o ofício -, teria que convencer as pessoas à sua volta a bancar um filme sobre o delírio febril que teve durante o sono. Um filme de terror. Ninguém no Brasil ousava fazer produções do gênero.

Vendeu cotas, reuniu o esforço dos alunos da sua escola de cinema e interpretação (que havia montado anos antes justamente para viabilizar as suas ideias como cineasta), pegou dinheiro com os pais, saiu de casa brigado com a mulher, vendeu os móveis… Enfim, conseguiu o necessário para dar vida a Zé do Caixão.

Curiosamente, não era Mojica quem faria o personagem nas telas. No entanto, o ator Dráusio de Oliveira deu para trás quando soube que iria ter que segurar uma aranha caranguejeira de verdade nas filmagens. Mojica fez testes, mas ninguém o convencia. Não eram assustadores o suficiente. Só ele sabia o terror que tinha vivenciado, então tomou a decisão de interpretar ele mesmo o Zé do Caixão.

O coveiro, pelas suas mãos, ganhou cartola, capa e unhas postiças. O último aspecto era a voz. Mojica não usaria som direto no filme e todos teriam que ser dublados. O problema é que Mojica tinha um português ruim e uma das características do personagem era o uso do seu intelecto para transmitir um ar de superioridade em relação aos matutos. O que foi resolvido com a entrada de Laercio Laurelli como a sua voz oficial.

Durante as filmagens, Mojica era tratado como maluco pela equipe técnica e por outras pessoas do meio cinematográfico de São Paulo, pois subvertia fórmulas consagradas e tidas como o jeito certo de fazer cinema: não gostava de imagens estáticas e usava a câmera na mão, atuava olhando para o espectador, além de usar a criatividade para driblar a escassez de recursos, seja em movimentos de câmeras elegantes e elaborados, seja na aposta em uma fotografia escura e pesada, pouco usual na época.

Personagem transcendeu o seu criador – Foto: Divulgação

Zé do Caixão ganha vida própria

Quando ficou pronto, Mojica correu a cidade inteira atrás de alguém que aceitasse passar “À meia-noite levarei sua alma” nos cinemas, mas nada. Ninguém se interessava. Demorou quase um ano e muitas provações pessoais e familiares para que Mojica encontrasse o distribuidor baiano Milton Silva, que tinha o controle de boa parte das salas no Nordeste. Ele assistiu ao filme e comprou a parte de Mojica e de todos os cotistas.

A partir daí, “À meia-noite levarei sua alma” fez história. Zé do Caixão ganhou vida própria após diversos outros filmes e programas de televisão. Transcendeu o seu criador. Gênio, louco, mestre do cinema. Reverenciado no exterior, execrado na sua terra por tanto tempo. Todos sabem quem é Zé do Caixão, poucos viram os seus filmes. É nessa dicotomia que José Mojica Marins, morto em 2020, viveu desde aquele pesadelo, bendito ou maldito, cujo lançamento ocorreu há exatos 60 anos, neste dia 9 de novembro.

Simplicidade e genialidade lado a lado

“À meia-noite levarei sua alma” é pobre em orçamento, mas rico em sutilezas e detalhes que o transformam em um dos maiores clássicos do cinema brasileiro. A trajetória de Josefel Zanatas, nome de batismo de Zé do Caixão, incomoda, fere princípios. Ele zomba de Deus, dos mortos, dos oprimidos. É um pária por opção. Não se mistura, se julga superior. E é amedrontador justamente no sentido de que confia em si mesmo e em mais ninguém. Um individualismo expresso em planos e enquadramentos que o colocam acima do povo, preso em sua ignorância e crendices.

Com uma história forte, a parte técnica, que seria um calcanhar de Aquiles, sobressai positivamente. A já citada fotografia possui um tom fantasmagórico, com um ar expressionista de se contemplar admirado. E a montagem é dinâmica, casa de forma perfeita com o roteiro, este escrito de forma direta. Ação e reação. É assim que o filme se desenrola. Uma cena, em especial, dá uma noção da inventividade e apuro técnico de Mojica no uso da profundidade de campo: Zé do Caixão come um carneiro e ri em frente à janela enquanto vê a procissão de Sexta-Feira Santa passar. Além do plano-sequência em que Zé conclama os mortos a virem buscar sua alma. Um primor.

Fora isso, a clara inspiração de Mojica em seriados norte-americanos e histórias em quadrinhos, empresta uma jovialidade ao filme e um frescor de novidade que faltava no cinema nacional. Assim, a cena inicial, da velha bruxa avisando aos espectadores para não assistirem à produção é impecável na função de criar intimidade e nos inserir na história. Já os closes nos olhos do antagonista – que se transformam, tomados pela ira – sempre que um ato de violência extrema está prestes a acontecer provoca o suspense de forma bastante eficaz.

E é assim, com amor ao cinema e muita criatividade para superar a precariedade financeira, que Mojica pode ser considerado um dos maiores mestres do cinema de horror mundial. E tudo começou com “À meia-noite levarei sua alma”, um filme que sintetiza a história do gênero no Brasil.

Onde assistir

  • “À meia-noite levarei sua alma” está disponível para streaming no Globoplay e no Telecine (Amazon Prime Channels).

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