Os silêncios de Harry Caul, ao longo do filme “A conversação”, são particularmente significativos, pois não se configuram apenas como momentos de introspecção, mas expressam uma profunda inadequação diante do mundo, resultado de um medo paralisante da solidão. É paradoxal, eu sei. E piora. Afinal, a justificativa está atrelada à atividade profissional do personagem, voltada à comunicação. Harry é um especialista em escutas, em “grampear” conversas. A culpa, o cinismo e a desconfiança que orbitam este tipo de trabalho o alienam e o influenciam na mesma medida, com reflexos severos na sua personalidade, na relação com as pessoas e com a vida em si.
Gene Hackman faz uma composição soberba de um protagonista que tem na ambiguidade o seu traço característico. Harry é reconhecido por ser o melhor profissional do ramo – somos lembrados desse fato a todo o momento por vários personagens secundários. Contudo, no recorte do filme, Harry surge à beira de uma ruptura, totalmente falho. Tomado por insegurança e dúvidas que afetam drasticamente o seu modo de trabalhar e viver. E Hackman nos transmite toda essa frustração por meio de uma postura ora retraída e hesitante, ora impetuosa e imprudente. Tudo proporcionado por uma narrativa que se constrói lenta e paulatinamente, sem jamais perder interesse e força.
O cuidado com os detalhes no filme revela a sua genialidade. Por exemplo, mesmo quando encontra um pretenso refúgio na música ao tocar o seu saxofone, Harry não se entrega. É um prazer artificial, já que ele pratica sempre acompanhado por uma gravação. Ou seja, não consegue se desvencilhar de um estado de eterna vigilância. Inclusive, podemos dizer que este é exatamente o tema do filme, introduzido logo em sua primeira cena. No “olhar de Deus”, câmera de cima para baixo, temos um plano geral em uma praça cheia de gente, onde o diretor, Francis Ford Coppola, estimula o nosso voyeurismo em um exercício de metalinguagem.
Explico. Na praça, há um mímico. Ele faz a sua apresentação seguindo várias pessoas aleatoriamente. Compenetrado por um instante, logo após dispersa sua atenção e toma outro rumo. Como espectadores, fazemos exatamente como ele, acompanhando trajetórias a esmo, sem saber quem ali importa à trama. Até que o filme nos mostra Harry, que, por sua vez, ora vejam, também está à espreita, de olhos e ouvidos abertos para a movimentação de um casal. É um ciclo que vai se repetir constantemente até o fim e que leva o protagonista, totalmente obcecado, ao abismo.
Nesse sentido, é notável como as conversas obtidas por meio de gravações são as únicas que possuem uma “validação” para Harry. Para ele, qualquer outra tentativa de contato – vizinhos, colegas de trabalho ou romances – é descartável. Não por não terem importância, mas porque ele simplesmente não sabe lidar com aquilo. Perdeu noções de respeito, espaço, intimidade e, acima de tudo, confiança. Restou apenas solidão e paranoia. Esta, alimentada, sobretudo, pela culpa que carrega pelo resultado de um trabalho anterior de vigilância, e que tenta a todo custo tirar de seus ombros.
Tudo isso faz de Harry um personagem complexo. Incapaz de se comunicar com os outros e consigo mesmo. Suas tentativas nesta seara nem podem ser levadas em consideração, dada a sua total inabilidade social. Até por isso se envolve com o resultado do mais recente trabalho. Dessa vez ele não entregou as gravações e seguiu a vida. Não. Ele se agarrou à história de outras pessoas para tentar dar sentido à sua. Em vão, claro, pois o problema está nele. “A incomunicabilidade de si para si mesmo é o grande vórtice do nada. Se eu não acho um modo de falar a mim mesmo a palavra me sufoca a garganta atravessando-a como uma pedra não deglutida”, já dizia Clarice Lispector.
Dessa forma, nada é capaz de prover-lhe o desejado conforto. Nem a religião, que parecia ser o seu último esteio. Quando quebra uma imagem da Virgem Maria, Harry se vê irremediavelmente sozinho. E isso, por si só, não seria um problema. O medo que ele tem da solidão, sim. O medo o paralisa, tira-lhe a naturalidade e, por fim, destrói seu cerne. Mas, ao cair, Harry transmite a nós o legado da sua miséria. Nada mais natural, já que somos nós que o observamos, que o analisamos e julgamos.
Assim, ele joga no colo do espectador uma relevante discussão sobre privacidade e, claro, moralidade. Relevância que aumenta exponencialmente ao trazermos o filme para a atualidade, com as redes sociais, presença maciça no mundo virtual e fuga de responsabilidades sobre discursos e ações. Temos, hoje, um verdadeiro arsenal comunicacional. Sabemos usá-lo apropriadamente? Isso nos aproxima, diminui as distâncias física e emocional? Ou apenas estamos inseridos na mesma espiral de loucura e paranoia que Harry se deixou levar lá em 1974?
Onde assistir
- “A conversação” está disponível para streaming na Darkflix e para aluguel na Apple TV.
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