Pará

União entre criatividade e insumos tradicionais acaba em delícias

Andreia Uchôa viu nos produtos regionais e no seu conhecimento e criatividade a chave para desenvolver uma linha de produtos próprios
FOTO: WAGNER SANTANA
Andreia Uchôa viu nos produtos regionais e no seu conhecimento e criatividade a chave para desenvolver uma linha de produtos próprios FOTO: WAGNER SANTANA

Cintia Magno

Reduto de matérias-primas com valor nutricional gigantesco, a Amazônia guarda um enorme potencial para o uso criativo de ingredientes típicos da região. Para além dos preparos já conhecidos de iguarias como o jambu, a pupunha e uma infinidade de frutas e ervas regionais, a criatividade é capaz de levar à inovação na hora de pensar em produtos diferentes e que são capazes de atrair a curiosidade até mesmo de quem já é um apreciador desses insumos.

Quando a engenheira de alimentos Andreia Uchôa começou a compreender de forma mais profunda o potencial da biodiversidade regional, um universo de possibilidades se fez presente em sua atuação profissional. Habituada a desenvolver produtos para terceiros, ela viu nos produtos regionais e no seu conhecimento e criatividade a chave para desenvolver uma linha de produtos próprios, que mais tarde deram origem à Amazônia Artesanal.

“A Amazônia tem matérias-primas maravilhosas, com potencial nutricional gigantesco. A gente tem os melhores aromas, os melhores sabores e eu compreendi o potencial que isso tinha”, avalia. “Eu sempre gostei muito de geleias, então, tudo começou com a produção de geleias. Mas eu não gostava muito daquelas geleias de supermercado, dura e só essências, então eu pensei por que não trabalhar com as nossas frutas?”.

Iniciando os trabalhos com o desenvolvimento de geleias com base nas frutas da Amazônia, como os tradicionais cupuaçu, bacuri, açaí, Andreia logo passou a desenvolver também os molhos de pimenta, as compotas e licores. Ao mesmo tempo em que desenvolvia os produtos mais conhecidos, ela também pesquisava, estudava e experimentava novos usos para insumos tradicionais. Foi quando surgiram o sorvete de jambu, a geleia de pupunha, a pupunha em calda ou em picles, entre outras inovações.

“Eu tenho uma linha de produtos só com flor de jambu, eu tenho sorvete, tenho molho de pimenta, a flor em conserva, a geleia de flor de jambu também, o xarope, e a cachaça de jambu que já é mais comum”, conta, ao explicar que utiliza sempre a flor fresca do jambu em seus preparos. “O que a gente gosta do jambu é o tremor e o Espilantol (substância responsável pela sensação de tremor) está 80% na flor, então, eu deixei de usar folha desde o início”.

Na linha dedicada à pupunha, um superalimento conhecido dos povos amazônicos, Andreia também não hesitou em inovar nos preparos. Tudo começou com uma ideia despertada pelo seu esposo, que logo foi aproveitada pela engenheira de alimentos.

“A pupunha é muito gostosa e o meu esposo pedia sempre para fazer uma geleia de pupunha e eu não acreditava muito. Mas deu certo e eu me apaixonei mais ainda pela pupunha”, conta. “Então começou a saga da pupunha, molho de pimenta de pupunha, sorvete de pupunha, geleia de pupunha, picles de pupunha, pupunha em calda, bolo de pupunha e aí eu vou criando”.

Hoje, a geleia de pupunha está entre os produtos que mais chamam a atenção dos clientes, mesmo os já habituados ao consumo tradicional da pupunha cozida apenas com sal e consumida acompanhada por um bom café. A própria variedade de produtos desenvolvidos a partir de um único fruto é outro indicativo do potencial guardado pelos produtos regionais.

“Dá para fazer muita coisa. A gente pode pegar um produto, uma fruta, e aproveitar ela integralmente. O meu trabalho é basicamente esse, chegar com o pequeno produtor, pegar o que ele pode me fornecer de melhor e extrair tudo daquela fruta, aproveitamento integralmente mesmo”, considera, ao explicar que desde 2020 os produtos da Amazônia Artesanal também levaram à abertura de uma cafeteria no bairro da Cidade Velha, em Belém.

“Pupunha em calda e o picles são duas versões de conserva de pupunha. Uma é doce, como se fosse um pêssego mesmo em calda, e a outra é para saladas, uma conserva ácida como se fosse azeitona, alcaparras ou picles de pepino mesmo. A pupunha é um superalimento, rica em betacaroteno, tem óleos benéficos, vitaminas, então, é um alimento completo”.

À medida que descobre um ingrediente novo, Andreia conta que sempre busca pensar em como ele pode ser usado, como ela pode aproveitar aquele ingrediente integralmente de forma criativa. Para isso, ela também não abre mão de trabalhar com os pequenos produtores.

“Eu gosto sempre de trabalhar com o pequeno produtor. O meu cupuaçu, que eu faço as minhas geleias, é aquele cupuaçu cortado na tesoura. Eu não tenho nada contra a indústria, mas a gente que é paraense sabe identificar qual é a melhor polpa”, considera.

“Eu também utilizo sempre frutas e ervas regionais, com pigmentações naturais, então, a ideia surgiu mesmo desse amor pelas frutas da Amazônia e pela liberdade de poder criar, desenvolver produtos, com segurança, e com inovação. Não tem como a gente não aproveitar toda essa biodiversidade”.

Cacau: fruto de grande diversidade

No caso das mulheres que formam a Cacauaré – Cacau Nativo da Amazônia, a criatividade também é nutrida pelo conhecimento tradicional e pela diversidade proporcionada por um fruto amazônico, o cacau. Noanny Maia, 37 anos, fundadora e sócia da Cacauaré – Cacau Nativo da Amazônia, lembra que a história que deu origem à empresa iniciou gerações antes da sua, com seus avós.

“Meu avô Nario Guimarães, natural de Mocajuba, era produtor de Cacau Nativo de Várzea e junto da minha avó e dos filhos moravam na ilha do Tauaré, por volta de 1920”, conta. “Meu avô comercializava as amêndoas de cacau para as indústrias de chocolate e minha avó fazia doces e geleias com o néctar do cacau, considerado um refugo do processo de beneficiamento da amêndoa”.

Noanny lembra que essa cultura não chegou a ser transmitida para a geração de sua mãe, Nilce Maia, já que ela e os irmãos não tinham interesse na vida rural à época. Porém, quando Nilce casou-se com outro Mocajubense, mesmo residindo e trabalhando em Belém, o casal nutria o sonho de voltar para Mocajuba.

“Então meu pai compra do meu avô o terreno na beira do rio, na ilha do Tauaré e lá ele inicia em 2018 um cultivo de açaí. Enquanto nós, filhas, moramos em Belém e estamos trabalhando em nossas carreiras profissionais”, lembra Noanny, se referindo também às irmãs Naianny Maia e Neilanny Maia.

“Em 2020 meu pai faleceu de Covid-19, deixando nossa vida devastada, minha mãe completamente arrasada e muitos sonhos teoricamente encerrados. Assim, eu e minhas irmãs decidimos morar em Mocajuba por causa da nossa mãe e nos apropriar da herança da terra. Lá vimos que o açaí é um produto muito bom, mas foi o amor pelo chocolate que nos fez ir atrás do cacau”.

Mistura entre o inovador e o ancestral que dá muito certo

De forma muito intuitiva, as irmãs e a mãe iniciaram uma produção de amêndoas para chocolate e, com o tempo, buscaram se capacitar para melhorar cada vez mais para produzir as amêndoas no padrão necessário para a produção de chocolate. Na hora de pensar em um nome para a marca, mais uma vez a memória e a tradição familiar se fizeram presentes.

“Cacauaré era uma brincadeira nossa com nosso pai, uma bebida em que misturávamos cachaça com cacau ainda na casca e tomávamos com os caroços. Então, minha irmã disse, vai chamar Cacauaré, pois é o Cacau do Tauaré e vai nos levar a essa memória com nosso pai”, lembra.

“Iniciamos a produção profissional, artesanal, em 2021 e conseguimos escoar 2 toneladas de cacau. Acontece que com a crise da cadeia ficamos com mais de 3 toneladas paradas e decidimos buscar outro mercado. Foi então que encontramos o mercado dos Nibs e resolvemos criar receitas para vender ao mercado de alimentação saudável, tendo o Nibs como principal base. Além disso, resolvemos resgatar a artesania da nossa avó dos doces, licores, xaropes, geleias e tornar produtos do nosso portfólio”.

Foi neste momento que a criatividade, aliada à tradição, levou à disponibilização de produtos inovadores e que chamam a atenção do mercado. Para além das amêndoas e da barra de cacau 100%, as produtoras passaram a oferecer o xarope e o licor de cacau, além da Granola da Amazônia e do Mashmallow de Cacau, um doce feito à base de mel de cacau reduzido.

“Todos os nossos produtos são cuidadosamente e exaustivamente estudados, testados e validados. Os Nibs, as barras de cacau 100%, as geleias. Fazem parte de horas de estudos sobre como o cacau pode melhorar a vida de quem compra, mas principalmente de quem faz”, conta Noanny.

“A granola é um produto que criamos observando tendências e vendo nossos diferenciais. Mocajuba é um importante pólo agroextrativista da região e temos em abundância os 4 produtos que contêm na granola, cacau, tapioca, castanha-do-Pará e gergelim. Quando planejamos, vimos que fornecimento de matéria prima não seria problema, diferencial de sabor também não, destacando a presença da nossa farinha de tapioca e do Nibs de cacau, só restava pensar em nomes. Outras empresas possuem similares, sabíamos disso, então nosso diferencial seria mesmo na originalidade do produto, aquilo que verdadeiramente só nós temos, que é a forma de fazer”.

Com essa tendência norteando os caminhos, Noanny conta que a Cacauaré deixou de ser uma empresa de subprodutos de cacau, para passar a ser uma empresa de impacto socioambiental que tem como principal missão agregar valor ao cacau nativo de Várzea para promover inclusão produtiva para mulheres e acesso a melhores mercados a toda a cadeia. Tudo isso aliado à inovação.

“O cacau é uma planta de poder e oferece uma abundância enorme, não por acaso é o fruto enviado de Deus para o homem porque ele tem mil formas de uso e infinitos benefícios”, considera. “Por muito tempo, o cacau foi reduzido a matéria-prima do chocolate, sendo invisibilizado e desvalorizado, enquanto que é endêmico e ancestral na Amazônia. Queremos explorar cada vez mais essa mistura entre o inovador e o ancestral. A receita do Mashmallow é da minha avó, ela vendia na beira do rio e se orgulhava muito de todas as coisas que tinha conseguido comprar com o dinheiro do cacau”.