
Ananindeua - O Tribunal de Contas dos Municípios do Pará (TCMPA) decidiu manter a suspensão da licitação de cerca de R$ 180 milhões da Prefeitura de Ananindeua, para a coleta do lixo. Na manhã de ontem, os conselheiros do tribunal homologaram (confirmaram), por unanimidade, a decisão do relator do processo, o conselheiro Antonio José Guimarães. No último dia 14, Guimarães mandou que a Prefeitura suspendesse a licitação, devido aos indícios de irregularidades detectados pelos técnicos do tribunal: “graves infrações” à Constituição Federal e a várias leis, “bem como aos princípios da legalidade, economicidade, eficiência e moralidade”, com possibilidade de prejuízos aos cofres públicos.
A nova licitação representa R$ 100 milhões a mais do que a última, realizada em 2023, ou seja, há menos de dois anos. Hoje, os contratos das empresas Recicle e Terraplena, para a coleta do lixo, somam menos de R$ 80 milhões anuais. E mesmo assim, são pagos com atrasos de até 6 meses.
É a terceira vez, do mês passado para cá, que a nova licitação emperra. Na primeira vez, a própria Prefeitura decidiu revogá-la, com a justificativa de que impugnações apresentadas ao Edital levaram à necessidade de “alterações significativas” em peças fundamentais do processo: o Estudo Técnico Preliminar e o Projeto Básico. Ou seja, aparentemente, uma derrapagem técnica, apesar de se tratar de uma concorrência de tamanho valor.
Na segunda vez, foi revogada por recomendação do TCM, que recebera uma denúncia de irregularidades. Mesmo assim, pelo que afirmam os técnicos do tribunal, a Prefeitura não se emenda. Segundo eles, essa terceira licitação contraria uma série de leis. Em primeiro lugar, o artigo 37 da Constituição Federal, que determina que a administração pública obedeça aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Mas, ainda segundo os técnicos, ela também fere o artigo 5º da Lei das Licitações 14.133/2021, que determina que as licitações e contratos do Poder Público obedeçam aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, do interesse público, probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável.
Não bastasse isso, também contraria o artigo 23 da Lei 8987/1995, que estabelece as cláusulas que os contratos de concessão de serviços pelo Poder Público têm de conter. E elas são muitas, justamente para minimizar os riscos de danos aos cofres públicos e de má qualidade dos serviços.
Todas essas irregularidades decorreriam do fato de a Prefeitura estar tentando realizar uma licitação para a contratação “ordinária” (comum) de empresas para a coleta do lixo, quando a licitação deveria ser para a concessão do serviço público de gestão dos “resíduos sólidos” (o lixo). Porque, argumentam os técnicos do TCMPA, a concessão desse tipo de serviço é exigência da Lei 14.026/2020, que trata sobre o saneamento básico.
E a coleta e tratamento do lixo faz parte, sim, do saneamento básico, quer o médico e prefeito de Ananindeua, Daniel Barbosa Santos, saiba ou não. Os técnicos não dizem, mas é possível que a insistência da Prefeitura em uma licitação mais simples decorra da intenção de beneficiar a Norte Ambiental Gestão e Serviços Ltda (CNPJ: 10.944.348/0001-90), empresa pertencente ao empresário Cleiton Teodoro da Fonseca, que é amigo do prefeito.
Como mostrou o DIÁRIO, há fortes suspeitas de que essa licitação seria “um jogo de cartas marcadas”, para entregar à Norte Ambiental uma parte generosa da milionária coleta de lixo. No último dia 14, por exemplo, um caminhão da empresa foi até flagrado recolhendo lixo, pela manhã, nas áreas do Icuí-Guajará e Icuí-Laranjeira. Os uniformes dos trabalhadores traziam a logomarca da Seurb, a secretaria municipal de Serviços Urbanos. Já o caminhão não possuía qualquer identificação da empresa proprietária. Mas a placa dele (TJQ4J12) permitiu constatar que pertence à Norte Ambiental, segundo o Detran, o departamento estadual de Trânsito.
O problema é que essa empresa não possui (ainda) contrato com a Prefeitura para a coleta de lixo. O único contrato dela é para a recuperação e manutenção de “vias de Ananindeua”. No portal municipal da Transparência, os únicos pagamentos para a Norte Ambiental são por causa desse contrato. Que, aliás, foi firmado pelo então secretário municipal de Saneamento, Paulo Roberto Cavallero de Macedo, afastado do cargo pela Justiça, no ano passado, por suspeita de ligação a uma quadrilha que fraudou mais de R$ 100 milhões em licitações.
Além disso, o prefeito tem sido visto circulando pelo estado em um avião da Norte Ambiental. E o DIÁRIO já obteve até um vídeo de uma dessas viagens. Ela ocorreu durante a campanha eleitoral do ano passado. O vídeo mostra Daniel desembarcando do avião e sendo recebido por manifestantes da campanha de um candidato a prefeito. O local seria o município de Soure, na Ilha do Marajó. O avião, PT-GJM, fabricado pela Hawker Beechcraft, ano 2007, modelo G58, foi comprado pela empresa, em setembro de 2024 (às vésperas das eleições), por R$ 5,2 milhões, do Hospital Modelo, de Ananindeua. Mas tão ou mais estranha do que essa proximidade é a própria história da Norte Ambiental e a maneira como ela foi contratada pela Prefeitura de Ananindeua.
O extrato do contrato 068/2022, entre a Norte Ambiental e a Sesan, a secretaria municipal de Saneamento de Ananindeua, foi publicado no Diário Oficial do Município (DOM), de 27/10/2022. O valor era de até R$ 48 milhões anuais, para fornecimento e aplicação de CBUQ (um tipo de asfalto), em ruas da cidade. Mas, para realizar esse contrato, a Sesan não realizou uma licitação própria: ela usou uma Ata de Registro de Preço (SRP 019/2022) de uma Concorrência Pública (CP 001/2022), realizada pela Prefeitura de Abaetetuba.
E o problema é que o DIÁRIO não conseguiu encontrar nem essa Ata e Concorrência de Abaetetuba, nem o processo de contratação da Norte Ambiental pela Sesan. Não foram localizados documentos nos portais da Transparência desses municípios, no mural das licitações do TCMPA e no portal das licitações. E até no Google os links que levavam a esses documentos tiveram as suas páginas apagadas.
Também a história da Norte Ambiental é incomum. Ela foi aberta em maio de 2009. E se chamava, então, Petrolíder Comércio e Transporte de Combustíveis Ltda. Seu endereço era a avenida Transamazônica, no município de Novo Repartimento. O capital social era de R$ 300 mil (R$ 724 mil atualizados pelo IPCA de dezembro). Aparentemente, era um posto de gasolina, já que as suas atividades se resumiam ao comércio de combustíveis e lubrificantes. Na época, os donos eram Cleiton Teodoro da Fonseca e uma empresária de nome Siliane. Mas ele detinha 90% do capital e era o administrador.
Histórico de alterações
Em fevereiro de 2014, veio a primeira alteração societária: saiu Siliane e entrou Creuza Felícia Fonseca Damasceno, a mãe de Cleiton. A empresa se mudou para a zona rural de Tucuruí e passou a se chamar Laminar Exportação, Indústria e Comércio Ltda – EPP. O Capital subiu para R$ 600 mil (R$ 1,1 milhão atualizados), 90% de Cleiton. A empresa fabricava laminados e vendia madeira e derivados no atacado. Mas também incorporou várias atividades, incluindo terraplenagem, construção de edifícios, aluguel de máquinas, locação de veículos, por exemplo.
A segunda alteração societária ocorreu em fevereiro de 2016, quando a empresa elevou o capital para R$ 3,5 milhões (R$ 5,5 milhões atualizados, ou um aumento real de 400% em 2 anos). Passou, então, a se chamar Norte Maq Empreendimentos Ltda-EPP. E as suas atividades se voltaram à construção civil, embora ainda mantivesse várias outras, estranhas a esse segmento, como o transporte escolar.
A terceira alteração veio em julho de 2017, quando o capital aumentou para R$ 4,050 milhões (cerca de R$ 6 milhões atualizados). Foi então que ela passou a se chamar Norte Ambiental Gestão e Serviços Ltda, mas continuou a ter como sede o município de Tucuruí. Hoje, segundo a Receita Federal, a empresa possui um capital de R$ 20 milhões e fica no município de Marituba. Sua principal atividade agora é a coleta de resíduos não-perigosos.
No entanto, também possui mais de 40 atividades secundárias: fabrica artefatos de cimento, faz manutenção e reparação de tratores, gera e comercializa energia elétrica, constrói edifícios, rodovias, ferrovias, barragens, redes de água e esgoto, ruas, praças, calçadas; faz pintura e sinalização de rodovias e aeroportos, terraplenagem, instalação de equipamentos de iluminação em vias públicas, portos e aeroportos; perfuração e construção de poços de água, locação de veículos e embarcações, transporte escolar, transporte de carga, compra, venda e aluguel de imóveis próprios, e ainda limpa casas e prédios – o que se imaginar. Um leque de atividades tão amplo é mais comum em empresas de fachada. Mas não que esse seja o caso da Norte Ambiental.
Por Ana Célia Pinheiro