Denilson D’almeida
Enquanto o prédio da Escola Municipal Teófila Teixeira, fundada em 1965, está fechado para reforma, as aulas estão sendo ministradas de forma improvisada numa casa na orla do povoado de Coqueiro, zona rural de Curuçá, nordeste paraense. Para o professor Rafael Barroso, 36 anos, este período de obras não tem sido problema, já que ele ministra as aulas de Educação Física no calçadão da encosta às margens do rio que dá o nome à cidade. O espaço é cercado por uma paisagem privilegiada.
Rafael utiliza como ferramentas de trabalho alguns elementos extraídos de forma sustentável da natureza, para trabalhar a coordenação motora e o desenvolvimento dos estudantes. A metodologia também ajuda a garotada a enxergar de outra forma os recursos naturais existentes na mata envolta da comunidade e nos rios.
O povoado do Coqueiro fica distante menos de cinco quilômetros (em linha reta) do centro de Curuçá. É uma das 14 comunidades, entre agrovilas e ilhas, que o professor percorre diariamente para dar aulas. Localidades que só é possível chegar por meio de estradas de terra e por manguezais. Atravessar pontes e rios também faz parte da logística para ir à escola.
“Por dia, percorro, em média, 70 Km de estradas vicinais, ramais e rios. Tudo é válido para tentar fazer a diferença na vida dos meus alunos. Todos eles têm um sonho e, nessa jornada que eu assumi, tento ajudá-los a alcançar a realização deles, por meio da Educação. Assim também realizo os meus [sonhos]”, descreve Rafael.
Em todas as escolas onde Rafael trabalha os alunos têm entre 7 a 13 anos de idade e estão matriculados nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Estas unidades oferecem uma modalidade conhecida por multissérie. É um sistema que lembra o antigo “supletivo”, no qual os alunos formam uma turma única, mas aprendem o conteúdo do 1º ao 5º ano.
A jornada deste professor começa por volta das 6h, assim que o dia clareia. De moto, ele deixa a área urbana e segue por caminhos onde o asfalto dá lugar à poeira e aos buracos. Nas margens dos ramais, as casas de pau a pique destacam a arquitetura rural e a vida simples de agricultores e pescadores. O aceno de mãos confirma que a comunidade conhece Rafael. O gesto representa um alívio para os adultos, pois ver o professor passar a caminho da escola é ter certeza de que, naquele dia, os filhos deles terão aula.
A garotada costuma ser pontual. Inclusive, muitos chegam antes do professor. É este entusiasmo dos alunos que estimula a dedicação do educador físico. “Quando acordo, já penso que tem crianças me esperando, cheias de esperança e com a intenção de sair de uma realidade que, às vezes, é triste”, ressalta. “A aula não é só um aprendizado. É um momento de felicidade que eles sentem – e tem – para transformar a realidade, que, às vezes, é sofrida”.
No caminho, o professor cruza com ônibus do transporte escolar levando os alunos do Ensino Médio que vão assistir às aulas nas escolas do centro da cidade, seguindo numa outra etapa da formação deles. Nas comunidades rurais e ribeirinhas as escolas vão apenas até o Ensino Fundamental. “Eu creio que com uma educação diferenciada, com conteúdo regionalizado a gente consiga manter esse aluno em sala de aula e fazer com que ele continue sonhando, ser transformado”, comenta o professor sobre como combate à evasão escolar.
Distâncias e paisagens são desafios do cotidiano
No Brasil, 19% dos alunos de Educação Básica (Infantil e Fundamental) estão nas zonas rurais e comunidades ribeirinhas e em escolas que pertencem à rede pública municipal de Ensino. Curuçá, por exemplo, tem 57 escolas de Ensino Fundamental e 4 de Ensino Médio. Nas turmas do Fundamental, estão matriculados 6.687 alunos, conforme os números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).
Segundo o Censo Escolar 2021, a Região Norte concentra 36,1% das escolas de pequeno porte que oferecem vagas para a Educação Básica (que inclui o Ensino Fundamental). Nestas unidades, o número de crianças matriculadas não ultrapassa o total de 50 alunos. Esmiuçar estas informações permite conhecer a realidade das escolas para além dos números. Permite conhecer a geografia dos lugares onde elas estão construídas e funcionando.
No caso do Pará, por exemplo, cuja dimensão territorial (que é de 1.247.954 Km²) chega a ser maior que a de Angola, país da África com 1.247.000 Km². O Estado possui características geográficas próprias, que representam um desafio para os professores que precisam percorrer as comunidades ribeirinhas, quilombolas e rurais.
No caso do professor Rafael Barroso, além das distâncias percorridas por estradas de piçarra, ele também enfrenta terrenos de mangue e atravessa rios e igarapés para chegar ao Colégio Catarina Neves, na ilha de Pacamorema. Esta unidade escolar não é mais distante das que ele precisa ir, mas é a que exige maior determinação e coragem para enfrentar um caminho que já fez dezenas de professores abrirem mão do trabalho.
Para chegar até a ilha, o educador físico percorre quatro agrovilas e segue por uma estrada de piçarra que leva até um manguezal, onde ele deixa a motocicleta a pé por uma ponte de 900 metros de extensão, construída em madeira. A estrutura, que corta a vegetação e igarapés, apresenta vários pontos críticos e risco de desabamento, mas é o único meio para chegar até a margem do rio que cerca Pacamorema. A travessia do professor é garantida pela prefeitura. Um canoeiro fica à espera dele para transportá-lo até o trapiche da ilha.
Questionado se toda essa dificuldade não o desestimula, Rafael responde que não. “Ser professor no campo é aceitar um desafio todos os dias. Isto nos faz ver outras possibilidades para um mesmo problema. Esta rotina tem me ensinado que a gente está sujeito a muitas coisas”, ressalta. “Mas quando não impomos barreiras e incentivamos um aluno, a gente aprende que toda essa batalha é apenas um detalhe para fazer a diferença na vida de alguém”, completa. Cada escola os alunos apresentam comportamentos e culturas distintas. Conhecer a identidade local facilita a melhor forma de ensinar. “O aluno do campo é uma criança que sonha em ter tudo – às vezes até sair da comunidade. A ilha (de Pacamorema) é um local à parte. É outra situação! Eles aceitam melhor a realidade, mas não deixam de sonhar com outras perspectivas”, disse Rafael sobre o perfil dos alunos ribeirinhos.
Números
Alunos no Pará (IBGE)
308.213
Alunos matriculados no Ensino Infantil
1.389.983
Alunos matriculados no Ensino Fundamental
391.603
Alunos matriculados no Ensino Médio
Alunos em Curuçá
1.645
Alunos matriculados no Ensino Infantil
6.687
Alunos matriculados no Ensino Fundamental
2.317
Alunos matriculados no Ensino Médio
Professores no Pará
16.343
lecionando no Ensino Infantil
58.873
lecionando no Ensino Fundamental
15.367
lecionando no Ensino Médio
Professores em Curuçá
94
lecionando no Ensino Infantil
271
lecionando no Ensino Fundamental
78
lecionando no Ensino Médio
Censo Escolar
24,6%
das escolas com séries iniciais tem até 50 alunos matriculados
60,2%
das escolas de Educação Básica são das redes municipais de Ensino
19%
dos alunos da Educação Básica (Infantil e Fundamental) estão na zona rural
59,9%
dos alunos do Ensino Fundamental estão nos anos iniciais