Cintia Magno
Mais de 2.400 sítios arqueológicos cadastrados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) estão localizados no Estado do Pará, o quarto maior volume registrado no país, ficando atrás apenas do Rio Grande do Sul, Paraná e Minas Gerais. Testemunhos da história de povos que viveram sobre os territórios milhares de anos atrás, os sítios arqueológicos guardam vestígios que ajudam a conhecer a formação identitária da humanidade.
Ainda que o número de sítios arqueológicos registrados no Pará seja representativo, a perspectiva é de que exista um universo inteiro de sítios que nunca foram identificados ou sequer conhecidos pela comunidade científica, mas que seguem presentes no território paraense guardando a memória da
ocupação dos seus povos originários.
Desde sedimentos, fragmentos de cerâmicas ou objetos fabricados em pedra, tais vestígios podem representar uma série de informações importantes para a ciência não apenas do ponto de vista do conhecimento do passado, mas também de lições que podem ser apreendidas para o presente e o futuro.
A superintendente do Iphan no Pará, Rebeca Ferreira Ribeiro, explica que a identificação de um novo sítio arqueológico no território nacional demanda comunicação obrigatória ao órgão, já que todo o patrimônio arqueológico brasileiro é patrimônio da União.
“Mesmo que um patrimônio arqueológico esteja em uma propriedade privada, ele pertence à união. A propriedade é da terra para cima, então, se o empreendedor identifica um sítio arqueológico mesmo que a propriedade seja privada, aquele material da terra para baixo pertence à união e ela precisa emitir uma autorização para que seja trabalhada aquela área”, explica, ao pontuar que a identificação de um material arqueológico também não pode ser feita por qualquer pessoa.
“Normalmente, para ter certeza de que determinado local é um sítio arqueológico, é preciso a avaliação de um arqueólogo porque o material, às vezes, é um fragmento, um pedaço de cerâmica e apenas um arqueólogo poderá afirmar se realmente aquilo ali é um material arqueológico”.
Entre o material arqueológico salvaguardado no Estado do Pará, um em especial chama a atenção. Tombado e reconhecido como patrimônio mundial pelo Iphan desde 1940, a Coleção Arqueológica do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) reúne aproximadamente 120 mil objetos, entre objetos inteiros e fragmentados, e cerca de 2 milhões de fragmentos oriundos de diversas regiões da Amazônia.
A curadora da Reserva Técnica Arqueológica do MPEG, Helena Lima, explica que a coleção é formada por uma quantidade significativa de peças de cerâmica, que compõem uma boa parte do acervo, porém, ele é muito mais diverso que isso.
“Muitas vezes as pessoas têm essa ideia de que a arqueologia é só os vasos e as urnas de cerâmica, mas o universo com o qual trabalha a arqueologia é de fragmentos. Temos muitos objetos produzidos em pedra, que são os líticos”, explica.
“As evidências mais antigas de ocupação da Amazônia justamente trazem sociedades que usavam muito da pedra para fabricar os seus objetos, pontas de projéteis, raspadores, cortadores, perfuradores. Também têm os líticos polidos, as lâminas de machado, machadinhas”.
Além da cerâmica e objetos líticos, materiais orgânicos como carvões, sementes, amostras de sedimento e até mesmo a madeira, apesar de serem muito poucos os casos em que elas se preservam ao longo de tantos anos, são objetos arqueológicos e integram a coleção do museu.
Cada um deles traz uma informação importante sobre as formas de ocupação e modo de vida dos povos originários.
“É uma diversidade grande de materiais e não são só objetos, mas também amostras de solo que vão contar para a gente um pouco de como era a interação desses povos com o ambiente. As chamadas terras pretas são solos arqueológicos, são solos de origem humana. Eles resultam do processo de habitação e interação desses povos com o ambiente que, ao invés de pauperizar o solo, enriqueceram esses solos”, diz.
Helena explica que as terras pretas são solos muito mais férteis e resilientes do que os latossolos naturais da região. Então, são vestígios que demonstram formas de viver, de habitar e de interagir com o ambiente que aumentaram a biodiversidade, ao invés de reduzir.
“Esses são legados que deixam lições de formas diferentes e menos destrutivas de habitar a Amazônia. É uma história longa. São 13 mil anos de ocupação persistente, de ocupação contínua na região e a partir da arqueologia a gente aprende que as paisagens tais quais conhecemos hoje e a tão falada biodiversidade têm origem nessa ocupação de longa duração, são milhares de anos de interação, um verdadeiro mosaico de interação entre seres humanos e processos naturais, que criaram florestas, criaram solos, criaram
paisagens”.
Outra lição aprendida através da arqueologia, segundo aponta a curadora da coleção arqueológica do MPEG, é o respeito à diversidade, à diversidade de povos, de línguas, de culturas. “Essa diversidade é expressa, na arqueologia, a partir da cultura material, mas também das formas de habitar o ambiente”, aponta.
“A própria cerâmica também conta um pouco dessa diversidade, nós temos conjuntos diferentes, com receitas diferentes, com estéticas muito diferentes ao longo dessa história antiga que foi brutalmente interrompida com a invasão europeia em 1500. Mas ela não foi apagada. Ela existe e persiste, resiste até hoje”.
Pesquisas iniciaram há mais de um século no Emílio Goeldi
Helena Lima considera que não é exagero dizer que a cerâmica é uma tecnologia altamente sofisticada e que remonta há 7 mil anos na Amazônia. Diferente do que muita gente pode pensar, os povos antigos foram pioneiros em muitas inovações tecnológicas e, segundo a pesquisadora, a cerâmica é uma delas.
“As cerâmicas mais antigas das Américas estão na Amazônia. As cerâmicas são verdadeiras linguagens que podem ou não se comunicar ao longo de tempos, ou ao longo de espaços diferentes. A estética marajoara é bem diferente da estética tapajônica, por exemplo. Então, são outros princípios do que é belo, do que é funcional e isso muda no tempo e no espaço”.
O que também se modifica com o passar dos anos é a própria arqueologia enquanto ciência, evoluções que também ficam registradas na coleção arqueológica salvaguardada pelo MPEG.
“Essa coleção também tem um significado importante para a própria história da ciência. A gente tem objetos que foram coletados em 1895, então, são quase 150 anos de uma peça guardada e cuidada por um Museu. As formas de coleta, as formas de tratamento desses objetos também variaram muito ao longo da história da ciência e essa coleção conta essa história para a gente”, considera.
“A história das expedições científicas lá do século XIX, o nascimento do que a gente chama de arqueologia científica nos anos 50, isso está expresso nessa coleção, assim como a história das técnicas de restauro, mas, claro o principal é a própria história dos povos originários, dos povos que são os verdadeiros donos desse acervo”.
A peça referida pela pesquisadora, que integra a coleção desde 1895, se trata de uma urna funerária de cerâmica coletada pelo pesquisador que dá nome à instituição, o próprio Emílio Goeldi. Helena explica que, hoje, por respeito, o museu não apresenta as urnas funerárias nas exposições, justamente pela funcionalidade que possuíam. De todo modo, o grande volume de peças está salvaguardado na reserva técnica e podem ser estudados por grupos de pesquisadores, estudantes, artistas e, inclusive, de populações originárias que também fazem visitas à reserva técnica.
“Aqui no Museu a gente tem investido muito trabalho na segurança dos acervos de uma forma geral, mas um acervo bem cuidado é um acervo que as pessoas conhecem e têm acesso. Então, além de primar pela segurança, a gente tem trabalhado na socialização desse acervo, no alcance público que esse acervo pode ter e é nessa perspectiva que fizemos essa reserva técnica visitável”, aponta Helena. “O Museu é responsável pela salvaguarda, mas esse é um bem de todos, mas sobretudo dos povos indígenas que são os herdeiros desses povos”.
RESTAURO
O trabalho de segurança e manutenção do acervo também passa pela restauração das peças, realizadas pelo próprio MPEG. Atuando na área de restauração da coleção arqueológica do museu desde 1983, o restaurador Raimundo Teodório explica que o trabalho de montagem das peças que chegam fragmentadas ao acervo se assemelha à montagem de um quebra-cabeças.
Ele conta que uma única urna funerária de cerâmica restaurada por ele recentemente chegou ao local em 107 fragmentos. “É uma peça inteira, mas que estava fragmentada. Primeiro se faz o trabalho de montagem e colagem e depois colocamos o reforço e fazemos o nivelamento, para dar estabilidade à peça para ela ir para a reserva técnica. É como um quebra cabeça mesmo”.
Como é identificado um sítio arqueológico?
A superintendente do Iphan no Pará, Rebeca Ferreira Ribeiro, explica que, hoje, a identificação de um novo sítio arqueológico ocorre, normalmente, quando uma determinada área passa por uma intervenção que demandará escavação do solo, que pode ser uma obra para a implantação de uma linha de transmissão entre dois municípios, por exemplo.
Iphan participa do processo de licenciamento desse tipo de obra e possui uma instrução normativa que indica os níveis de interferência na área para que, dependendo do porte daquela obra, seja indicado o estudo necessário. Se for uma obra de grande impacto, é solicitado pelo Iphan que haja o acompanhamento arqueológico da obra.
Se o arqueólogo que está acompanhando a obra identifica um material arqueológico, aquela obra para momentaneamente, alguém entra em contato com o Iphan e informa o aparecimento do material e, então, o órgão federal autoriza que seja feito um estudo daquela área. Ao final, o estudo é repassado à superintendência regional do Iphan, que o encaminha, junto com a identificação daquela região, para Brasília, onde fica o Centro Nacional de Arqueologia (CNA), que vai cadastrar esse sítio arqueológico.
EM NÚMEROS
33,36 mil
sítios arqueológicos estão registrados em todo o Brasil, segundo o Iphan.
2.461
sítios são cadastrados no Pará.
Cinco primeiros estados em número de sítios arqueológicos registrados no Iphan
1º Rio Grande do Sul – 3.951
2º Paraná – 2.746
3º Minas Gerais – 2.503
4º Pará – 2.461
5º Bahia – 2.399
Cinco primeiros municípios paraenses em número de sítios arqueológicos registrados no Iphan
1º Vitória do Xingu – 151
2º Santarém – 135
3º Altamira – 127
4º Itupiranga – 102
5º Canaã dos Carajás – 95
Fonte: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), dados atualizados em 07/11/2022. Disponível em: https://www.gov.br/i phan/pt-br/patrimonio-cultural/patrimonio-arqueologico/cadastro-de-sitios-arqueologicos