Cintia Magno
Inserido no calendário oficial de feriados estaduais desde 1996, o dia 15 de agosto marca um fato que guarda uma carga simbólica única para a memória do Estado do Pará, o dia em que a então Província do Grão-Pará aceitou fazer parte do restante do Brasil. A chamada Adesão do Pará à Independência completa, neste ano, dois séculos e ajuda a entender não apenas parte da história do território paraense, como também uma série de outros fatos emblemáticos que estão relacionados.
Quando as notícias acerca da Independência do Brasil, proclamada em 07 de setembro de 1822, chegaram à então Província do Grão-Pará, a elite portuguesa que estava no poder no Estado não recebeu bem a novidade. Recusando-se submeter ao comando de Dom Pedro I, que já se encontrava no poder no Rio de Janeiro, o governo do Pará à época decide manter-se colônia de Portugal e ignorar o resto do Brasil, situação que se estendeu por mais de um ano, até que as lideranças fossem forçados a romper as relações do Pará com a coroa portuguesa.
Tal rompimento se oficializou com a assinatura da ata de Adesão do Pará à Independência, documento bicentenário que integra o acervo do Arquivo Público do Estado do Pará e que ajuda a contar essa história. O diretor do Arquivo Público, Leonardo Torii, aponta que não apenas este, mas outras documentações salvaguardadas no arquivo mostram que o processo que culminou na adesão do Pará não foi nada fácil.
“Os documentos históricos mostram muitas brigas, muitos conflitos, muitas negociações até culminar nesse processo. Inclusive, tem um fato bem característico que é a Tragédia do Brigue Palhaço, que vai acontecer em outubro, logo após a adesão que ocorreu em agosto. São fatos que se ligam”.
O ANTES
Para compreender todo esse processo, é preciso entender por que a Província do Grão-Pará decidiu não aderir à independência, inicialmente. Leonardo aponta que existem várias causas, mas a principal delas é que durante muito tempo do período colonial, a Amazônia era um outro estado. Existia o Estado do Grão-Pará e Maranhão, que era separado do Estado do Brasil. Então, durante muito tempo não havia uma ligação institucional entre o Estado do Brasil e o Estado do Grão-Pará e Maranhão.
“Nós, aqui, recebíamos ordens direto de Lisboa, não de Salvador. Então, essa falta de contato ou esse contato pequeno dentro do Brasil, faz com que realmente não se crie um laço afetivo entre essas regiões”, considera.
“A outra causa é a grande concentração de portugueses que moravam aqui, principalmente comerciantes. Então, como a comunicação era direto com Lisboa, os comerciantes também lidavam diretamente com Lisboa. Não havia esse contato institucional com Salvador, que era a capital do Brasil, por exemplo”. Nesse contexto, os principais cargos da Província do Pará eram ocupados por portugueses também. Logo, assim que aconteceu a Independência do Brasil, chegou-se à conclusão que o Pará não iria aderir.
Ainda antes da adesão, o cenário que se encontrava na Província do Grão-Pará e Maranhão era de tensão constante. O ano de 1823 foi marcado por vários acontecimentos e revoltas por parte de pessoas insatisfeitas. Algumas dessas revoltas, inclusive, estão registradas em documentos do Arquivo Público.
“Tem um documento que mostra que no dia 28 de maio, Muaná adere à Independência. Então, Muaná é a primeira região da Amazônia a aderir essa Independência, antes da capital, já que Belém só adere em agosto. Só que isso vai durar uma semana. Os revoltosos tomam a cidade, ficam uma semana no poder, e depois vem o Governo de Portugal e sufoca essa revolta”, explica Leonardo.
“Antes, nós temos também aqui em Belém, no dia 14 de abril, uma revolta também a favor da adesão. Nesse bojo, também, nós temos o Felipe Patroni, que funda o jornal chamado O Paraense para divulgar essas ideias contrárias ao Reino de Portugal e a favor da Adesão. O cônego Batista Campos escreve para esse jornal, também, então, não existe apenas a ata da adesão, esses outros documentos que estão ao redor ajudam a entender melhor esse processo, esse quadro de conflitos e negociações”.
O PROCESSO DE ADESÃO
Além do Pará, os Estados do Maranhão, Bahia e a Cisplatina não aderiram à independência naquele primeiro momento. Diante disso, Dom Pedro I contrata um lord inglês para ser o responsável por fazer com que as províncias que não aderiram, pudessem aderir. E o diretor do Arquivo Público explica que ele se dirigiu até as províncias seguindo o caminho natural, passou primeiro pela Bahia, depois Maranhão e por último chegou ao Pará, a última província a aderir à independência.
“Quando ele ainda está no Maranhão, ele manda um emissário, que é o Grenfell, para o Pará para sondar como estava a situação e é aí que ele começa o grande blefe dele”, explica.
“Grenfell chega ao Pará dizendo que eles estavam armados, preparados para atacar a cidade caso as autoridades locais não aceitassem a independência. Só que eles estavam todos no Maranhão, ainda. Foi o grande blefe que deu certo. As autoridades locais já estavam divididas, uns queriam e outros não, então, eles resolvem aderir e assinam o documento. São mais de 100 pessoas assinando essa ata, inclusive o Cônego Batista Campos, Félix Clemente Malcher”.
O DEPOIS
No primeiro momento, os representantes da elite que assinam a ata da Adesão do Pará, incluindo o Cônego Batista Campos, são favoráveis ao processo de independência, na medida em que almejavam uma maior autonomia da província. Porém, logo após a adesão eles se decepcionam com os rumos que o Império do Brasil escolhe caminhar.
“Dom Pedro I mostra-se extremamente autoritário, extremamente centralizador e isso decepciona todas essas autoridades que, no primeiro momento, estavam apoiando a adesão. Diante dessa decepção – eles criaram uma expectativa que não foi contemplada – eles começam a um processo de oposição ao Governo Imperial”, explica Leonardo.
“Não é à toa que ocorre em Belém a revolta de outubro do mesmo ano, encabeçada pelo Cônego Batista Campos e a repressão que o Governo Imperial aplica em cima dessa revolta vai fazer com que se crie uma liga entre esses revoltosos, que vai culminar na Cabanagem. A Cabanagem, que é a tomada do poder pelos revoltosos, são justamente essas pessoas que se decepcionaram com a adesão e que mais tarde vão iniciar um processo revolucionário”.
Outros documentos relatam o que foi essa revolta ocorrida em outubro de 1823, que resultou na Tragédia do Brigue Palhaço, e a prisão do Batista Campos. Como forma de repreender a revolta, o Governo Imperial prende Batista Campos, que chega a ser amarrado a um canhão, mas que depois é solto e levado ao Rio de Janeiro. Já os demais presos durante a tentativa de sufocar a revolta foram, em parte, fuzilados e outra parte foi aprisionada dentro do porão de um navio, o Brigue Palhaço.
“E vai ser amarrado em um canhão, mas depois ele vai ser solto, vai ser levado para o Rio de Janeiro e lá vão absolver ele. Ele volta para cá, só que ele não fica quieto, ele vai começar a divulgar as ideias que vão dar origem à Cabanagem.
“Eram mais de 200 pessoas e já que não tinha lugar na cadeia pública, onde hoje é o São José liberto, eles os prendem dentro do porão do navio e no outro dia, misteriosamente, eles amanhecem quase todos os mortos”, explica Leonardo. “Depois de solto, Batista Campos volta para Belém, mas ele não fica quieto. O Batista Campos, junto com os líderes cabanos, vão utilizar essa tragédia para inflamar mais ainda a população contra o Governo Imperial de Dom Pedro I. Isso vai servir de pólvora, lá em 1835, quando explode a Cabanagem”.
Exposição busca contextualizar acontecimentos de 1823
Todos esses fatos podem ser contados a partir da série de documentos salvaguardados pelo Arquivo Público do Estado do Pará, espaço que não apenas preserva esses documentos, como também os disponibilizam para a pesquisa de qualquer pessoa interessada. Parte desses documentos que contextualizam o cenário do ano da adesão do Pará estão reunidos na exposição “Bicentenário da Adesão do Pará à Independência: Registros nos Documentos do Arquivo Público”, aberta ao público de 11 a 31 de agosto, no prédio do Arquivo Público, no bairro da Campina.
O diretor do Arquivo, Leonardo Torii, explica que a ideia da exposição é reunir a documentação que fala sobre o antes da adesão, sobre a adesão e sobre o pós-adesão. “A ideia é contextualizar esse processo do ano de 1823. Por esses documentos a gente tem como ver como estava a Província antes da adesão. A independência já tinha acontecido, então, havia um clima de rivalidade aqui dentro. Um grupo que queria aderir, liderado pelo Batista Campos, e um grupo que não queria aderir, que queria continuar ligado a Portugal, que era o grupo dos portugueses”, contextualiza.
“Então, tem alguns documentos que mostram pessoas sendo presas porque gritavam ‘morte aos brasileiros e viva os europeus’, ou seja, a favor de que continuasse do jeito que estava. Havia também algumas denúncias, por exemplo, contra o Batista Campos. Tem um documento que mostra uma autoridade portuguesa dizendo que o Batista Campos era perigoso por estar divulgando ideias contra o Reino de Portugal. Inclusive, ele cita também o nome do Felipe Patroni, dizendo que ele trouxe duas pessoas para cá para imprimir o jornal O Paraense e ele vê o perigo da divulgação dessas ideias pelo jornal”.
Outra perspectiva apontada pela exposição é a de recuperar a participação popular neste processo, como no caso da Revolta de Muaná, por exemplo.
“A ideia também é ressaltar essa participação popular, na Revolta de Muaná, na revolta do dia 14 de abril em Belém, na revolta em outubro depois da adesão. A gente tem que quebrar um pouco aquela ideia de que o povo é controlado, ou que ele só estavam assistindo”, acredita.
“Na verdade, não. Eles tinham muita consciência do que eles estavam fazendo, da luta que eles queriam e eles tinham interesse nisso. Por exemplo, o que os escravizados queriam ao participar desse movimento? Queriam liberdade. Como o Brasil ganhou a independência de Portugal, eles estavam vendo a possibilidade da abolição da escravidão, o que não aconteceu e, mais uma vez, eles se decepcionaram”.
SERVIÇO
Exposição Fixa no Prédio do Arquivo Público do Pará
Data: De 11 a 31 de agosto
Horário: Segunda a sexta-feira, das 8h às 14h
Local: Arquivo Público do Estado do Pará, travessa Campos Sales com 13 de Maio, Campina
Entrada: Gratuita