Pará

O rio e eu: como é a vida de quem vive embarcado no Pará

No comando do barco, Ledilson é responsável por fazer o transporte escolar de dezenas de crianças entre o município de Belém e a Ilha das Onças. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.
No comando do barco, Ledilson é responsável por fazer o transporte escolar de dezenas de crianças entre o município de Belém e a Ilha das Onças. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

Cintia Magno

A vida de quem vive embarcado segue o fluxo embalado pela jogada da maré. Seja transportando passageiros, mercadorias, pescado ou o tão apreciado açaí, os barqueiros que transitam entre Belém e as localidades ribeirinhas do interior do Estado levam consigo as experiências de quem, ao longo da jornada de trabalho, acaba cruzando com alguns banzeiros pelo meio do caminho. Mas, passado o susto, o que fica são muitas histórias a contar.

Na companhia de apenas um irmão, o comandante Edílio Lalor, 35 anos, viveu uma das experiências que mais marcou os seus mais de 12 anos de profissão. Em meio à imponente Baía do Marajó, com o barco carregado por paneiros de açaí, a embarcação na qual navegavam os irmãos ‘sentou’ em um barranco de areia. “Ficamos presos lá. Pra sair teve que ser numa jangada que a gente mesmo fez. Aí a gente encostou pra beira e pedimos resgate”, lembra, ao contar apenas uma das muitas histórias já vivenciadas. “Depois conseguimos resgatar a embarcação e ficou tudo bem”.

Para garantir o sustento da família, uma vez por semana Edílio sai do município onde mora, Ponta de Pedras, no Marajó, e segue viagem em direção à Feira do Açaí, no Complexo do Ver-o-Peso, em Belém. Depois de comercializar toda a carga de açaí, no mesmo dia, ele orienta a embarcação no sentido contrário e retorna para casa. “São quatro horas de viagem. Eu aprendi a comandar com o meu pai e depois acabou virando a minha profissão, sou comandante”.

O freteiro Miguel Ferreira Sampaio, de 66 anos, conheceu a rotina embarcado ainda criança, ajudando os pais, e segue nela até hoje. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

A história da profissão herdada de pai para filho se repete nas diversas embarcações ancoradas no Complexo do Ver-o-Peso. Para quem tem o rio como rua, a relação com os barcos dos mais variados tamanhos inicia desde muito cedo. “Fomos criados nessa rotina, eu aprendi a pilotar com o meu pai”, conta Ledilson Costa, 36 anos, morador da Ilha das Onças, no município de Barcarena. “Desde pequeno a gente já aprende a pilotar e depois, muitas vezes, isso acaba se tornando a nossa profissão”.

No comando do barco, Ledilson é responsável por fazer o transporte escolar de dezenas de crianças entre o município de Belém e a Ilha das Onças. Tendo a Baía do Guajará como principal estrada a cruzar, ele conta que todo o cuidado é pouco. “A gente já está acostumado com o rio. Essa questão dos banzeiros fazem parte da rotina de quem trabalha embarcado, é coisa que acontece mesmo. Quando tem uma situação da maré estar mais agitada ou de alguma tempestade no meio do caminho, é manter a calma para sair daquela situação”.

Também morador da Ilha das Onças, Felipe Acioli, de 31 anos, também conhece bem a força dos banzeiros que se formam nos rios da Amazônia. Certa vez, no Furo do Arrozal, ainda no município de Barcarena, ele passou por uma situação que nunca mais esqueceu. “É uma situação muito agoniante, foi muito banzeiro mesmo que eu achei que o barco ia virar”, recorda, ao contar que, além dele, outros cinco passageiros seguiam na embarcação. “Nessas horas é pedir proteção e colocar em prática o que a gente aprendeu no curso de comandante”.

A decisão de seguir a profissão de barqueiro foi abraçada por Felipe há sete anos, quando ele comprou uma embarcação própria. Diariamente, ele faz quatro viagens entre Belém e a Ilha das Onças, levando passageiros que vão e voltam da cidade em busca de serviços, produtos e o que mais for necessário. “É uma profissão boa, eu gosto”.

No comando do barco, Ledilson é responsável por fazer o transporte escolar de dezenas de crianças entre o município de Belém e a Ilha das Onças. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

Para quem não pode ou não quer se deslocar até a área urbana da capital paraense, as embarcações que realizam frete de mercadorias são a solução. O freteiro Miguel Ferreira Sampaio, de 66 anos, conheceu a rotina embarcado ainda criança, ajudando os pais, e segue nela até hoje. “Aqui a gente recebe a carga que vem da fazenda e leva para a Vila do Camará, em Cachoeira do Arari. A gente leva porco, abacaxi, as mercadorias que vão pro comércio de lá”.

Durante as 48 horas em que a embarcação passa navegando entre os municípios de Cachoeira do Arari e Belém, Miguel é o responsável pela manutenção dentro do barco, ajuda na limpeza, passa o café. Nesses anos de trabalho pelos rios, ele conta que nunca passou por uma situação de perigo, uma bênção que ele agradece sempre que pode. “Graças a Deus é um trabalho tranquilo. A gente que anda embarcado tem que ter fé em Deus, se não a coisa não dá certo”.

É Deus, também, quem passa na frente guiando o percurso feito pelo pescador Alaci Ferreira, 62 anos. Nascido e criado no município de Santa Cruz do Arari, o período que ele passa embarcado já é maior do que o que ele costuma passar em solo firme. Para que chegue até a Pedra do Peixe com o pescado para vender, ele passa quatro dias pescando. Depois, são mais três ancorado em Belém até que possa retornar para casa, em mais de 12 horas de viagem.

Alaci Ferreira, 62 anos, pescador. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

“Em alto mar tudo é dificultoso, mas Deus vai na frente. Tem uns momentos difíceis, que a gente topa com jacaré, piranha”, conta, enquanto mostra algumas das cicatrizes deixadas por piranhas em suas mãos. “Tem a chuva também que é perigosa às vezes, mas a gente vai levando, graças a Deus”.

Apesar dos perigos das águas, ele não esconde o gosto pela vida dentro da embarcação. “Ah, aqui (no barco) tem tudo, a gente passa o nosso café, faz a nossa comida, dorme. Tem até mais coisa do que em casa. Só não é melhor porque está longe da família, mas fora isso…”.