Cintia Magno
No período em que o Brasil ainda era colônia de Portugal, a cultura da cana-de-açúcar trazida pelos portugueses começou a se fortalecer no território, levando à implementação de inúmeros engenhos ao longo de toda a faixa litorânea brasileira. Com o passar do tempo e a expansão da ocupação europeia para o interior do Brasil, a atividade econômica chegou, também, à região amazônica e, mais especificamente, às margens dos rios do Estado do Pará. Presentes no cotidiano de comunidades de diferentes municípios do interior do Estado durante boa parte do século XIX, hoje esses empreendimentos são, em sua maioria, resquícios de uma memória longínqua, mas que é resgatada em uma recente publicação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o livro ‘Engenhos no Pará’.
Organizador da publicação que faz uma síntese do Inventário Cultural do Patrimônio Material dos Engenhos do Estado do Pará, o arquiteto Giovanni Blanco Sarquis explica que a ideia do livro é tornar acessível um material técnico que, no primeiro momento, seria um material interno que serviria mais a consultas na biblioteca do órgão. A partir da iniciativa da coordenação da Superintendência do Iphan no Pará, porém, chegou-se à ideia de organizar o livro para que pudesse ficar acessível à consulta do público em geral.
“Na oportunidade, a nossa coordenadora perguntou se eu não poderia transformar em publicação um material técnico que tinha sido o resultado de uma pesquisa de campo de um inventário sobre as remanescentes dos antigos engenhos nessa região do Rio Guamá, do Rio Acará, do Rio Moju, principalmente os municípios de Barcarena, Abaetetuba e Igarapé-Miri, mas também chegando a Benevides e Belém”, lembra. “Então, eu acabei me envolvendo com essa publicação e contei com a colaboração justamente dos dois pesquisadores que estiveram em campo, o Alex Raiol e a Catarine Saunier, para que a gente tornasse aquela leitura técnica, em uma leitura mais simples, de mais fácil compreensão e que traz consigo a importância de esse modo de vida e econômico que esteve muito presente, pelo menos em boa parte do século XIX e que também entrou um pouco pelo século XX, no cotidiano dessas comunidades”.
No levantamento, que depois veio a se transformar no livro, Giovanni conta foi identificado o que tinha sobrado dos antigos engenhos, cuja produção base era a cachaça. Ao todo, foram inventariados 45 engenhos em localidades de Abaetetuba, Acará, Barcarena, Belém, Benevides, Igarapé-Miri, Marituba e Moju. Deles, o último a suspender suas as atividades de produção foi o Engenho Pacheco, localizado no município de Abaetetuba. O arquiteto Giovanni Sarquis explica que, diferente da estrutura padrão dos engenhos observados em outros pontos do Brasil, os engenhos instalados no Pará tinham características diferentes.
“Há uma diferença considerável da organização espacial desses engenhos que se estabeleceram aqui no Pará. Uma diferença entre o tipo de construção da maneira como se vê aqui, com o engenho instalado na beira dos rios, em relação àqueles engenhos tradicionais que a gente está acostumado a ter contato por meio de filmes, novelas, literaturas. Aquele engenho tradicional do Nordeste ou então do Rio de Janeiro, em que se tem a casa grande, a senzala e toda aquela estrutura para fabricação e armazenagem do açúcar, da cachaça, enfim”.
Giovanni explica que, em grande parte, os engenhos inventariados no Pará não eram constituídos de senzala, já que a base da mão de obra já era assalariada. “Muitas pessoas já tinham a sua própria casa na beira dos rios, então, elas não precisavam realizar grandes deslocamentos e, tão pouco, se fixar de forma, ainda que temporária, às proximidades do engenho”, explica o organizador da publicação. “Os engenhos, em geral, como na maioria dos engenhos do Pará, eram movidos à força da água, eles não são engenhos elétricos (não existia eletricidade na época), e também não são engenhos movidos a gás e, em geral, nem por tração animal. Eles eram movidos, realmente, pela força da maré e com o tempo alguns engenhos, pelo poder aquisitivo, foram adquirindo estruturas a vapor para contribuir nesse processo de produção”.
A exceção a essa estrutura está representada no Engenho do Murutucu, localizado em Belém, na Estrada da Ceasa. Justamente por ser um dos mais antigos, ele ainda era característico dessa organização muito parecida com a do Sul e do Nordeste do Brasil, com casa grande, senzala, fabricação e armazenamento. Já os demais engenhos não tinham esse mesmo propósito. “Um engenho que eu poderia destacar é um que já não existe mais, hoje são apenas ruínas, o Engenho de Santana, em Barcarena. Temos também o Engenho de São Pedro às proximidades do Mosqueiro e temos o antigo Engenho de Val-de-Cães, onde hoje fica um hospital do Governo do Estado, na avenida Arthur Bernardes”, destaca o arquiteto. “Esses são grandes engenhos que estão contados nessa publicação, mas a maioria deles eram formados por grandes barracões onde se tinha a casa térrea, a casa com varanda, os armazéns de produção e armazenamento dos subprodutos da cana e, em geral, alguns poucos tinham capela”.
A capela, inclusive, é um dos resquícios que ainda podem ser visualizados tanto no caso do Engenho do Murutucu (em ruínas), quanto do Engenho de Val-de-Cães, em Belém. No caso da capela do antigo Engenho de Val-de-Cães, a estrutura foi restaurada e hoje é utilizada para realização de celebrações ecumênicas e eventos. “As estruturas dos antigos engenhos existem, hoje, mais como ruínas ou como memória e essa pesquisa de campo teve justamente esse propósito de, do ponto de vista da arqueologia, identificar a localização dessas antigas construções e, ao mesmo tempo, fazer o resgate dessa memória, principalmente por meio de entrevistas com as pessoas que conviveram ou cujos familiares conviveram nessa rotina”.
Giovanni destaca que a publicação envolve arquitetura, história, memória, arqueologia e pode ser consultada por qualquer pessoa, de forma gratuita. “Ela transita um pouco por essas áreas que são do cotidiano das atividades do Iphan e que têm como propósito retomar um assunto que faz parte da nossa cultura, que é elemento formador da identidade de muitas comunidades dos municípios onde os engenhos existiram e que, de certa forma, eram a base da economia destes lugares”.
PARA ENTENDER
PUBLICAÇÃO
l O livro ‘Engenhos no Pará’ torna acessível um levantamento feito pelo Iphan e que identifica e descreve os engenhos de cana-de-açúcar fundados no estuário amazônico desde o período colonial até meados do século passado. O livro pode ser acessado através do link: https://www.gov.br /iphan/pt-br/assuntos /noticias/iphan-lanca-201cengenhos-do-para201d-na-feira-panamazonica-do-livro-em-belem-pa/engenhos_do_ para_digitalebook.pdf
Engenho do Murutucu:
l Construído ao longo do século XVIII para a produção de açúcar e cachaça. Das ruínas que sobraram do engenho, o que ainda pode ser visto hoje é parte das paredes de pedra da capela em homenagem a Nossa Senhora da Conceição, erguida em 1711 e restaurada na segunda metade do século XVIII pelo arquiteto Antônio Landi, que chegou a ser proprietário do local. Em um inventário realizado em 1840, registrou-se a presença de uma casa de vivenda, casa de engenho, senzala, roda d’água, moendas de ferro, dentre outras construções. As ruínas foram tombadas pelo Iphan em outubro de 1981.
Fonte: Iphan.