Cintia Magno
Na colônia agrícola cortada pela antiga Estrada de Ferro de Bragança (EFB), distante apenas 34 quilômetros da capital da então Província do Grão-Pará, os ideários abolicionistas que ganharam força no Brasil da segunda metade do século XIX reverberaram ao ponto de Benevides se tornar o primeiro município da Amazônia e o segundo do país a abolir a escravidão.
Em 30 de março de 1884, portanto antes da assinatura da Lei Áurea em 1888, Benevides vivenciou o momento histórico que lhe garantiu o título de Terra da Liberdade e que até hoje se faz presente em diferentes referências ao longo do município.
Para compreender o contexto que levou o município paraense a de ter sido um dos primeiros do país a tornar livres os povos escravizados, é preciso entender as ocupações que se deram no território no início do surgimento de Benevides enquanto colônia agrícola. No final do século XIX e início do século XX, Benevides surge como uma das colônias agrícolas que se estendiam ao longo do percurso da antiga Estrada de Ferro de Bragança. Inicialmente, a colônia de Benevides serviria para abrigar imigrantes estrangeiros, sobretudo franceses.
Sem que os estrangeiros permanecessem no local por muito tempo, o esvaziamento da colônia despertou a preocupação das autoridades da então Província do Grão-Pará e, em culminância com uma grande seca que atingiu a Região Nordeste do país, o cenário possibilitou que a colônia de Benevides passasse a ser ocupada por migrantes cearenses. É neste momento que nasce o embrião de todo o cenário abolicionista que tomou conta de Benevides.
Autora de uma dissertação que relata a história da luta contra a escravidão em Benevides, a professora de história e doutoranda em História Social da Amazônia, Ana Carolina Trindade Cravo, explica que a então Província do Ceará foi uma das pioneiras no tratamento da liberdade escrava, tanto no que se refere ao seu discurso, quanto à atuação. Tanto é que está no Estado do Ceará a primeira cidade do país a libertar totalmente sua população escravizada, o hoje município de Redenção. Com a migração de cearenses para a colônia de Benevides, vieram junto os ideais abolicionistas que já avançavam no nordeste brasileiro.
“Mesmo após a migração para Benevides, os colonos ainda mantinham seus laços com a sua província natal, o Ceará. Então, se estabelece esse laço de comunicação constante entre Benevides e o Ceará”, conta Ana Carolina. “O que eu pude encontrar nas fontes, principalmente os jornais da época, é que eram constantes as viagens entre alguns membros de Benevides para o Ceará e vice-versa. Então essas pessoas que viviam ‘lá e cá’ foram importantes para trazer essa ideia de abolicionismo para dentro de Benevides”.
A historiadora contextualiza que tal visão de liberdade se dá justamente no fim do período do Império brasileiro. Neste momento, o movimento abolicionista se populariza e aí que Benevides entra. “Como os colonos em Benevides se viam como parte do Ceará, não se viam como sendo pertencentes à Província do Grão-Pará, e tendo o Ceará saído na frente na libertação, eles se acham também na função de libertar a colônia onde eles vivem”, contextualiza Ana Carolina. “A partir daí, na visão deles, eles iriam dar exemplo para que o resto da Província do Grão-Pará os seguissem como modelo. É nesse sentido que a Colônia de Benevides liberta a sua localidade em 30 de março de 1884 em comemoração à liberação na província do Ceará”.
Para que tudo isso fosse possível, a historiadora lembra que em Benevides se estabeleceu a Sociedade Libertadora de Benevides, um braço da Sociedade Libertadora do Ceará. Como alguns membros da diretoria da entidade em Benevides mantinham ligações com a entidade do Ceará, a conexão abolicionista entres as duas províncias se fortalece e uma vai abrindo caminho para outra até que alguns membros da Sociedade Libertadora de Benevides decidem libertar a região.
“Foi um evento muito noticiado na província em praticamente todos os jornais da cidade e inclusive os mais conservadores, como o jornal ‘Constituição’. Claro que os discursos dentro de cada jornal são diferentes, mas o discurso estava em todos os periódicos da época. Benevides vai se tornar a primeira da Região Amazônica a libertar os seus escravos”.
Anunciada com destaque em diversas edições anteriores, a festa abolicionista ou festa de redenção foi noticiada com grande destaque na capa de um dos jornais da época, o ‘Diário de Notícias’, no dia 30 de março de 1884. Em uma verdadeira homenagem aos abolicionistas, o periódico pontua a colônia de Benevides como o “ponto augusto da partida para o combate santo da abolição, da igualdade e da fraternidade” e o local da Província do Pará no qual, a partir daquele dia, a liberdade seria uma realidade.
As documentações históricas da época apontam que, no momento do ato de libertação, foram libertados os seis escravizados mantidos dentro do núcleo. O número é pequeno diante da quantidade de negros escravizados que ainda viviam na província do Grão-Pará, ainda assim, Ana Carolina Trindade Cravo aponta que o ato foi grandioso enquanto símbolo. “Benevides se torna um símbolo de liberdade dentro do território paraense e, estando muito próxima à capital, isso vai se transformar, aos poucos, em um incômodo às autoridades provinciais”, conta.
“No século XIX a maioria da população ainda era iletrada, mas como a notícia estava impressa nos periódicos, de certa forma é possibilitado o acesso por meio da leitura de outras pessoas, por exemplo. E essas mesmas informações vão chegar à população escravizada. Então, ela sabendo que tem um ponto de liberdade próximo à capital, ela foge. Primeiro ela é símbolo de liberdade, mas aos poucos, com cada vez mais fugas de escravos para a região, ela se torna um problema. Benevides se torna incômoda nesse sentido”.
Seja através do agenciamento de membros da Sociedade Libertadora de Benevides ou por conta própria, muitos negros escravizados fugiam em direção à colônia onde poderiam viver livremente. No local, eles tinham a possibilidade de trabalhar para os próprios colonos, recebendo por isso, e morando, em sua maioria, em casa própria no entorno da colônia.
“Eles tinham toda uma vivência, uma estrutura para poder ficar lá, recebiam pagamentos pelo trabalho, eram assinados contratos entre os membros da Sociedade Libertadora de Benevides e os colonos para que os ex-escravos pudessem trabalhar para os colonos”, explica a historiadora. “Pelo o que eu pude observar, quem recebia os salários não eram diretamente os libertos, eram os membros da Sociedade que, a partir daí, repassavam para eles”.
RESISTÊNCIA
Apesar da aparente tranquilidade com que se deu a cerimônia de libertação dos escravizados e da organização no período posterior, Ana Carolina Trindade Cravo aponta que houve muita resistência para que a condição de liberdade fosse mantida na colônia. Um Auto Crime de Resistência datado do mesmo ano da libertação, 1884, aponta um grande conflito envolvendo membros da Sociedade Libertadora de Benevides, ex-escravizados e as autoridades.
“Esse auto de resistência é contra José Ferreira Braga, que era um dos maiores agentes agenciadores da Sociedade Libertadora de Benevides. Neste documento, que consta no Centro de Memória da Amazônia, registra que, à época, as autoridades provinciais foram até o núcleo de Benevides prender uma escrava de nome Severa porque a sua senhora havia pedido. Só que quando as autoridades prendem essa escrava em uma casa que servia de cadeia da localidade, outros ex-escravos revoltados com a situação e membros da Sociedade Libertadora invadem essa delegacia e retiram Severa de lá porque afirmavam que, pelo fato de estar dentro de Benevides e ser amparada pela Sociedade Libertadora, ela não deveria estar presa, que ela estava livre”.
A partir desse episódio, Ana Carolina aponta que surge um longo processo, que foi de 1884 até 1890, envolvendo várias prisões e perseguições de membros da Sociedade Libertadora e de ex-escravizados. Da luta empenhada pelos abolicionistas, Benevides guarda até hoje a herança de ter sido a ‘Terra da Liberdade’, título que lhe foi concedido oficialmente, pelo Governo do Estado, em 2012, através do mesmo projeto de lei que transformou a data comemorativa de 30 de março de 1884 em Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do Estado do Pará. “É possível perceber que essa memória da libertação ainda é muito forte lá, o município tem muito orgulho desse título”.
Memória da libertação permanece viva
A representatividade de se tornar o primeiro município do Estado a libertar sua população escravizada faz com que a memória do marco histórico permaneça entrelaçado à rotina da cidade de Benevides. Se as pessoas que vivenciaram o ato de liberdade já não podem estar mais presentes para rememorá-lo, monumentos e algumas poucas construções do período resistem a contar parte da história.
Em uma das esquinas da Praça Nossa Senhora da Conceição, no distrito de Benfica, em Benevides, o antigo casarão avistado ainda hoje foi testemunha do período em que a escravatura, infelizmente, ainda se fazia presente no município. A partir de meados de 1875, o prédio centenário abrigou o Cartório de Notas e Registro Civil Travassos. Em meio às inúmeras documentações salvaguardadas pelo cartório, estava parte da história de pessoas que foram escravizadas.
O livro “Terra da Liberdade – Benevides: História e Colonização”, do historiador que, em vida, foi membro do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), José Leôncio Ferreira de Siqueira, aponta que o cartório continua, em seu Livro Nº 1, registros dos primeiros negros escravizados no distrito e região. Na escritura reproduzida no livro, é possível conferir o que seria o registro de penhora de um negro escravizado identificado apenas como Justino.
O cartório funcionou no mesmo local até poucos anos atrás, quando, a partir de mudanças na concessão, foi transferido para outro distrito. Hoje, o local permanece apenas como residência da família da última tabeliã que atuou no mesmo enquanto em funcionamento no casarão, Maria do Amaral Travassos, hoje com 90 anos de idade. “Muitas pessoas, pesquisadores e historiadores vêm visitar o casarão em busca dessa memória”, conta a filha de Maria, Aldenora Travassos, 58 anos. “O meu pai comprou o cartório de um irmão há mais de 58 anos atrás e, após o falecimento do meu pai, a minha mãe assumiu o cartório. O cartório funcionou aqui por muitos anos e realmente guardava os registros daquele período”.
MARCOS
Além do casarão de Benfica, o município de Benevides tem poucas casas que datam do período do final do século XIX e início do XX. Independente disso, são muitos os marcos espalhados pela cidade que rememoram o fato de Benevides ter sido pioneira, no Estado do Pará, na abolição da escravatura.
*Estação de Trem: No centro histórico de Benevides é possível ver o prédio onde teria funcionado a Estação da Estrada de Ferro de Bragança, hoje já bastante modificada. Era por meio da antiga estrada de ferro que muitos negros escravizados de outras cidades paraenses fugiam rumo à Benevides, onde a libertação dos escravizados já havia ocorrido.
*A Praça da Liberdade guarda um monumento em bronze que rememora a libertação: o busto de um homem negro com um par de algemas quebradas.
*Na entrada de Benevides, um enorme monumento também rememora o ato de libertação. Ele representa uma mão, através da qual passa o voo de um pássaro, simbolizando essa liberdade escrava da região.
*Em frente à sede da Prefeitura Municipal, outro monumento identifica Benevides como o ‘berço da liberdade’.
Fonte: Matéria originalmente publicada pelo DIÁRIO em 18 de outubro de 2020 e é republicada por ocasião dos 136 anos da Lei Áurea, comemorados neste 13 de maio de 2024.