Pará

Jovens autistas e os desafios da vida universitária

Isaac de Oliveira Cruz, 18 anos, calouro do curso de Sistema de Informação, e Adeline Oliveira, responsável pela Divisão de Apoio ao discente com Transtorno do Espectro Autista e Deficiência Intelectual da COACESS: UFPA tem hoje 72 alunos autistas com matrículas ativas.
Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.
Isaac de Oliveira Cruz, 18 anos, calouro do curso de Sistema de Informação, e Adeline Oliveira, responsável pela Divisão de Apoio ao discente com Transtorno do Espectro Autista e Deficiência Intelectual da COACESS: UFPA tem hoje 72 alunos autistas com matrículas ativas. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

Cintia Magno

Os números registrados nos últimos anos pelo Censo da Educação Superior demonstram uma realidade que é vivenciada na prática nas universidades brasileiras, a presença cada vez maior de pessoas autistas no ensino superior.

De acordo com a série histórica do levantamento realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), as matrículas de alunos autistas em cursos de graduação presenciais e à distância no Brasil passaram de um total de 1.122 em 2018, para 1.501 em 2019 e para 2.974 em 2020.

Uma evolução que aponta a necessidade cada vez maior das universidades não apenas garantirem o acesso de pessoas autistas, mas, sobretudo, as condições necessárias para a permanência delas.

Somente no último processo seletivo da Universidade Federal do Pará (UFPA) ingressaram na instituição 22 pessoas autistas através das cotas PCD, sem contar os alunos autistas que podem ter ingressado na instituição pela ampla concorrência. No total, apenas no campus Belém, a instituição tem hoje 72 alunos autistas com matrículas ativas, já somando os calouros de 2023.

Há cinco anos, o estudante do curso de Ciência da Computação, Igor Matthews Paixão Ferreira, 22 anos, segue o caminho em busca da graduação. Ele conta que desde que ingressou na instituição é acompanhado pela COACESS, uma coordenadoria de acessibilidade vinculada à Superintendência de Assistência Estudantil da UFPA que auxilia os alunos com deficiência a superar possíveis barreiras que eles podem vir a enfrentar durante a graduação.

Há cinco anos, o estudante do curso de Ciência da Computação, Igor Matthews Paixão Ferreira, 22 anos, segue o caminho em busca da graduação. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

Informando sobre as disciplinas que está cursando no momento – projeto de algoritmos II, matemática computacional I e banco de dados I – Igor traduz em uma palavra a motivação que lhe fez ter vontade de ingressar na universidade e que lhe motiva a continuar o seu curso: sonho.

“Estou há cinco anos aqui devido ao sonho, apesar das dificuldades domésticas. Eu venho para cá pelo fato do sonho de seguir mais adiante”, conta, ao destacar a área que mais lhe agrada dentro do seu curso. “O que eu gosto mais é a parte de programação, por exemplo”.

Os interesses pelas particularidades de seu curso foram conhecidos pelo aluno de Biotecnologia, Pierre dos Reis, 23 anos, ao longo da jornada. Hoje, ele já está na fase de finalização do Trabalho de Conclusão de Curso e conta que se sente bem frequentando a universidade. “No início eu não sabia o que significava o curso, mas pesquisamos bem e era isso mesmo. Trabalha com plantas, com genética, área da ciência. É uma área que eu gosto”.

Diferente de Igor e Pierre, a estudante Yanne Antunes, 27 anos, ingressou na universidade sem saber que era uma pessoa autista. No caso dela, que é aluna do curso de Letras-Alemão, o diagnóstico veio já na fase adulta, durante a graduação, o que foi fundamental para que ela compreendesse de que forma algumas atividades ou avaliações funcionam melhor para ela.

A estudante Yanne Antunes, 27 anos, ingressou na universidade sem saber que era uma pessoa autista. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

“Em alguns momentos da minha vida eu percebia que tinha diferença, que eu não funcionava como as outras pessoas, para mim algumas coisas não eram tão naturais como são para outras pessoas, só que nunca ficou na minha cabeça que eu era autista. Foi quando eu conheci uma aluna que estudou comigo e que é autista e ela me falou ‘Yanne, autismo em mulheres é diferente’ e começou a me apresentar vários artigos falando de autismo em mulheres e ela falou que tudo o que eu descrevia para ela eram traços de autismo”, lembra.

A partir disso, Yanne buscou se informar mais sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e percebeu que, realmente, ela tinha muita identificação com algumas características do autismo. “Quando eu fui fazer a neuroavaliação eu já tinha certeza do diagnóstico. Eu fui mais por uma questão burocrática, para pegar o laudo e com isso pude dar entrada no COACESS”.

Mais do que o documento, a possibilidade de se entender enquanto uma pessoa autista fez uma grande diferença na vida da universitária. Ela considera que, a partir desse entendimento, a universidade ficou mais acessível para ela.

“Hoje eu entendo como eu funciono, então, eu posso respeitar os meus limites, eu posso respeitar o meu funcional e posso adaptar as coisas para mim de acordo com a minha necessidade. Eu não preciso mais ficar me forçando a agir de uma forma que eu não vou conseguir porque não é do meu natural”, considera.

“Então, mudou bastante principalmente aqui na universidade porque antes eu achava que era incompetência minha, imaturidade, que eu que não sabia como fazer as coisas e hoje eu vejo que não, é só porque eu tenho funcionais diferentes. Hoje eu posso falar ‘professor, esse trabalho, desse jeito, não funciona para mim. O sr. tem como adaptar?’. Então, o diploma, hoje, para mim, pode ser real. Não é mais uma coisa distante por um problema meu porque eu não sou boa o suficiente. Hoje, eu já consigo sonhar com o diploma e com uma vida profissional, inclusive”.

 

Diagnóstico já na fase adulta

A importância fundamental do diagnóstico também foi evidente para a aluna do curso de licenciatura em artes visuais, Kattari Quadros Dias, 27 anos. Assim como Yanne e tantos outros alunos, o diagnóstico do TEA veio também na fase adulta. Depois que ele finalmente foi confirmado, tudo mudou na sua jornada acadêmica.

“Eu estou completando 10 anos aqui na UFPA, é o meu quarto ingresso e o terceiro curso diferente. Quando eu entrei, em 2013, eu não tinha o diagnóstico”, lembra.

“Assim que eu entrei, em engenharia química, eu senti logo as dificuldades que antes eu conseguia contornar na minha adolescência, na minha infância. Foi uma mudança radical que ocorreu, essa transição de ensino, e isso foi o que mais me impactou”.

 

 Ainda sem saber que era uma mulher autista e diante das dificuldades encontradas, Kattari acabou desenvolvendo comorbidades como depressão, ansiedade e síndrome do pânico. “O meu hiperfoco mesmo era em artes, mas também tem muito a questão do preconceito com a área. Nisso, eu fui tentando me moldar para responder de acordo com o que as pessoas queriam e aquilo foi me prejudicando”, considera.

“Isso é muito comum em quem é diagnosticado tardiamente porque a pessoa consegue se desenvolver, mas que custo, né? Então, acaba desenvolvendo essas outras questões psicológicas”.

A primeira suspeita de que ela poderia ser uma pessoa autista veio apenas em 2018 a partir de uma percepção da psicóloga com a qual ela fazia acompanhamento.

“Em 2017 para 2018 a psicóloga que me acompanhava disse que eu tinha muitos traços de TEA, só que ela não era especialista e por isso não sabia quem poderia me atender, já que eu já era adulta. Nisso, surgiu uma ‘pulga atrás da orelha’ porque eu nunca tinha ouvido falar nisso. Mas eu fui pesquisar por conta própria e vi que muita coisa se encaixava”, recorda.

“Eu fui conversar com os meus pais e eles disseram que eu tive atraso na fala, que eu demorei para andar, só que muito era associado porque eu demorei para nascer e fora que eu sou descendente indígena, então, muitas coisas eram associadas a crenças. Na época não se falava muito sobre TEA. O TEA mais visível era o severo, em que a criança que não fala”.

Kattari Quadros Dias: a primeira suspeita de que ela poderia ser uma pessoa autista veio apenas em 2018 a partir de uma percepção da psicóloga com a qual ela fazia acompanhamento. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

Diante da suspeita, Kattari enfrentou uma difícil jornada para que conseguisse, enfim, ter o diagnóstico de autismo fechado. “Foi muito complicado porque os profissionais, muitas vezes, não estão preparados para uma pessoa que não foi diagnosticada a infância toda e conseguiu se desenvolver até certa parte, que não é um estereótipo clássico do TEA. Aconteceu várias vezes de eu chegar com um profissional e ele falar ‘não, você não pode ser autista porque você fala, você entrou na faculdade’”, conta.

“Na época eu já estava entrando na universidade na minha terceira tentativa e, sem esse autoconhecimento, eu acabava me cobrando demais e me autodepreciando demais porque eu não era igual a todo mundo, porque eu não conseguia apresentar um trabalho que nem todo mundo”.

Mesmo com todas as dificuldades, no próximo dia 04 de abril completa um ano que Kattari recebeu o diagnóstico de autismo. Desde então, muita coisa mudou, tanto na forma como os professores passaram a tratar as suas demandas, quanto como ela própria passou a lidar consigo mesma.

“Desde que eu comecei a ter atendimento pela COACESS, eu não reprovei mais em nenhuma disciplina. Foi a primeira vez que eu passei dos 25% de integralização do meu curso, já estou em 41%, e passei a ter esse diálogo com os professores para adaptar algumas atividades. Através desse atendimento é que eu estou conseguindo seguir e voltei a ter mais expectativa. Eu quero me formar, quero fazer a minha pós-graduação dentro da área da inclusão e quero voltar para a universidade já como docente”.

 

Jovem calouro teve apoio da família e chegou lá

Os planos do futuro profissional também já são pensados pelo Isaac de Oliveira Cruz, 18 anos, calouro do curso de Sistema de Informação, um dos 22 alunos autistas aprovados através das cotas PCD no último processo seletivo da UFPA. Tendo que enfrentar os três anos do ensino médio em meio às inúmeras dificuldades geradas pela pandemia, e ainda vivenciando problemas de saúde na família, ele saiu da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) acreditando que não conseguiria concluir o ano.

Confiando no potencial de Isaac, porém, o seu pai acabou o inscrevendo no Processo Seletivo da UFPA sem que ele mesmo soubesse. A surpresa veio já com a aprovação.

“Foi uma surpresa quando eu recebi a notícia de que eu passei. Eu não acreditei. Mas, por incrível que pareça, aconteceu. Eu já estava declarando como encerrado o ensino médio, pelo menos no ano passado”, lembra, ao falar das primeiras impressões sobre a nova rotina estudantil, agora na universidade.

“É puxado, definitivamente. Estou tentando entender. Tem toda a questão de eu não ter feito muito o ensino médio por causa da precariedade devido a pandemia. A escola estava de reforma, mudança de escola, tudo isso. Mas eu acredito que eu vá aproveitar bastante o curso, esses quatro anos”.

Isaac de Oliveira Cruz, 18 anos, calouro do curso de Sistema de Informação. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

Isaac conta que pensa em atuar como desenvolvedor de jogos, mas ainda não sabe exatamente em que área, já que se interessa por vários setores. Enquanto isso, ele descobre a cada dia mais sobre o curso escolhido e também sobre a universidade que ele terá que frequentar bastante pelos próximos anos.

“É um lugar bonito, acho bonito o ambiente de universidade, principalmente a UFPA. Gosto desse ambiente ribeirinho misturado com o urbano”.

 

Programa busca garantir permanência de alunos com deficiência

Assim que realizou o processo de habilitação na UFPA, Isaac recebeu um comunicado informando sobre a possibilidade de integrar os programas e ações desenvolvidos pela Coordenadoria de Acessibilidade (COACESS). Dentre as divisões que a compõem, há uma voltada especificamente para alunos com TEA e, sempre que um estudante autista ingressa na universidade através das cotas PCD, é informado sobre a existência do programa. Para os alunos autistas que entram pela ampla concorrência, a chegada até os serviços da COACESS pode ser feita por iniciativa do próprio estudante.

A responsável pela Divisão de Apoio ao discente com Transtorno do Espectro Autista e Deficiência Intelectual da COACESS, Adeline Oliveira, explica que os serviços oferecidos pela coordenadoria são os mesmos tanto para os alunos que ingressam pela cota PCD, quanto para os entram pela ampla concorrência.

“Quando a pessoa autista ingressa na universidade pela cota PCD, após o processo de habilitação nós temos acesso a essa documentação, aos laudos, então a gente faz essa busca ativa por eles para informá-los dos nossos serviços, das nossas ações”, explica.

“Mas o programa não é só para o aluno que entra pela cota PCD. O aluno que entrou pela ampla concorrência, mas que teve o seu diagnóstico tardio também pode nos procurar para que a gente faça o mesmo serviço. A única diferença é que quando entra pela cota, a gente tem o conhecimento prévio, então, a gente busca por eles. Mas quando não entram pela cota, a gente conta com a comunidade da UFPA conhecer o nosso trabalho para divulgá-lo e esse aluno nos procurar”.

Adeline Oliveira é responsável pela Divisão de Apoio ao discente com Transtorno do Espectro Autista e Deficiência Intelectual da COACESS, Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

Adeline explica que a COACESS tem como objetivo garantir para esses alunos a permanência na universidade com qualidade até a integralização do seu curso. A partir do momento que os alunos chegam à COACESS, eles ingressam no Programa de Atendimento Individual (PAI/PCD), que depois de algumas avaliações, constrói um plano de ação. Como é individual, o plano consegue entender a demanda de cada discente que chega até a divisão.

“Para cada discente que se inscreve nesse programa e que é acompanhado por nós, nós fazemos um gerenciamento de como vai ser o plano desse discente em todo o curso. O que esse discente vai precisar a curto, médio e longo prazo?”.

A professora explica, ainda, que a divisão de TEA conta com um grupo de profissionais de diversas áreas. Além dela, que é Terapeuta Ocupacional, a equipe é composta por uma psicopedagoga, uma psicóloga e um pedagogo.

“Se eu percebo que esse aluno ou aluna precisa de um suporte psicopedagógico, ou de um atendimento mais próximo psicológico ou pedagógico, eu encaminho para os nossos profissionais”, aponta, ao destacar que trabalhos também são realizados com a própria instituição e seu corpo docente para buscar desenvolver metodologias que estejam adequadas a cada aluno.

“Esses alunos, quando entram no ensino superior, podem encontrar barreiras arquitetônicas, barreiras metodológicas curriculares, barreiras de comunicação e as barreiras atitudinais, que precisamos dar uma importância maior porque, quando a gente faz algumas sugestões de adaptações para a faculdade, para os professores ou até para a comunidade, se aquela pessoa não tiver a conscientização da importância de aderir àquelas adaptações, não vai acontecer. Então, a gente depende muito da aceitação do outro, do abraço do outro para o acolhimento das demandas de cada aluno também”.

A coordenadora reforça, ainda, que a entrada nos programas da COACESS são uma escolha dos alunos e alunas. Eles têm total autonomia de querer ou não ter acesso aos atendimentos.

AÇÕES

Entre as ações desenvolvida pela Divisão de Apoio ao discente com Transtorno do Espectro Autista e Deficiência Intelectual da COACESS, estão:

*Bate-papo atípico: É uma roda de conversa terapêutica realizada uma vez por mês com os alunos autistas da UFPA em que podem participar tanto os alunos estão no programa, quanto os que não estão.

*Programas e auxílios: Enquanto braço da Superintendência de Assistência Estudantil, são disponibilizados alguns programas e auxílios financeiros quando esse aluno ou aluna com deficiência apresenta perfil de vulnerabilidade socioeconômica.

*Pró-pedagógico: É onde estão inseridos os serviços de apoio psicológico e psicopedagógico, incluindo as monitorias, onde são trabalhadas outras formas para que esse discente inserido no programa entenda algum conteúdo específico que esteja com dificuldade.

*Orientação às faculdades e docentes: Busca-se orientar a faculdade e os professores sobre quais são as estratégias, as adaptações e os serviços e ações que esses professores e professoras podem adotar com determinado aluo que tenha tais características.

*Materiais: Produção de materiais informativos e adaptações de materiais para os docentes da UFPA. Tem docentes que mantêm um diálogo muito próximo com a divisão e a procura para saber como pode adaptar determinado material, como uma prova de cálculo, por exemplo, para aquele aluno ou aluna autista.

 

EM NÚMEROS

Número de matrículas de alunos autistas (Autismo Infantil + Síndrome de Asperger) em cursos de graduação presenciais e à distância no Brasil, segundo o Censo da Educação Superior do Inep.

2020 – 2.974

2019 – 1.501

2018 – 1.122

Obs.: A síndrome de Asperger é uma condição que faz parte do Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Obs2: No Censo da Educação Superior de 2021, o mais recente, não foram disponibilizados dados especificando casos de Autismo Infantil ou Síndrome de Asperger, como nos anos anteriores.

Fonte: Inep. Disponível em: www.gov.br/inep