A celebração do Dia de Finados também pode incluir rituais que busquem iluminar os caminhos de quem já partiu. No nordeste paraense, o dia 02 de novembro é o de celebrar o tradicional rito de Iluminação dos Mortos.
É no histórico Cemitério São Bonifácio que a Iluminação dos Mortos de Curuçá tem o seu ponto alto. Apesar das visitas realizadas aos túmulos dos entes queridos durante a manhã do Dia de Finados, é no início da noite, a partir das 18h, que o cemitério começa a receber o maior movimento.
Recebidas pelas vendas de comidas típicas e bebidas como a manicuera – tradicional bebida feita a partir da mandiocaba e servida na cuia – ainda na porta do cemitério, as famílias seguem caminho em direção às sepulturas de seus parentes para iluminar não apenas a noite escura, mas o caminho do ente que se foi e o seu próprio.
Toda a riqueza cultural, social, econômica e simbólica do rito foi estudado pela professora Valéria Fernanda Sales na tese “Saudades, reencontros e manicuera: espetacularidades entrecruzadas de afeto na Iluminação dos Mortos em Curuçá-PA”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Filha de mãe curuçaense, Valéria conta que acompanha a movimentação gerada pelo rito da iluminação desde criança e o encantamento pela tradição acabou lhe levando, anos mais tarde, a pesquisar a celebração. “O significado do rito da Iluminação dos Mortos é, claro, para iluminar o caminho daqueles que se foram, apaziguar o coração dos viventes que ficaram e começar a mudar as lembranças: sair da dor e chegar à paz, à tranquilidade, à luz. Então, a iluminação dos mortos, dentro da religião cristã, é iluminar o caminho do outro para que o outro fique cada vez melhor”.
Com esse objetivo em mente, no início da noite do Dia de Finados as famílias se dirigem ao cemitério levando consigo cadeiras, velas, flores artesanais e ainda bebidas ou o que mais for necessário para homenagear os familiares que partiram. “É quando vão os jovens, os adultos, então, é muita gente no cemitério que às vezes fica até difícil de entrar. Aí o cemitério, como a casa dos mortos, fica todo iluminado porque é dia de visita”, explica a pesquisadora.
“Dentro do cemitério as famílias levam as cadeiras, sentam ao lado dos túmulos, encontram os amigos, encontram os vizinhos de sepultura, que são aquelas pessoas que se falam uma vez por ano quando vão para a iluminação. Os familiares conversam com o morto, fazem suas orações, choram. Já na frente do cemitério seria esse espaço das comercialidades”.
Parte da celebração, na entrada do cemitério ocorrem as vendas da bebida doce tradicional não alcoólica, a manicuera; das comidas típicas paraenses em geral, de outras bebidas, das flores artesanais feitas de EVA e papel, chamadas de grinaldas e que podem ser personalizadas com a foto do morto, as cores do time que ele torcia entre outros pedidos feitos por encomenda.
“Em Curuçá, como em outras cidades, existe a casa dos vivos e a casa dos mortos, que é sagrada. Todas as famílias curuçaenses têm casa no cemitério e o status que têm enquanto vivos, elas querem quando mortos, então, tem túmulos que tem pátio para receber a família, para colocar as cadeiras e se reunir, iluminar o seu ente que partiu. Tem túmulos que são maiores, tipo uma capela, tem túmulos que são revertidos com as lajotas mais modernas ou então que vai para a tradição do mármore”, aponta a pesquisadora. “Então, se prepara a casa do morto para que os familiares vão visitar”.
Dentro do processo de pesquisa que resultou na tese de doutoramento, a pesquisadora acompanhou os trabalhadores do cemitério, desde os biscateiros até as pessoas que produzem as grinaldas vendidas na entrada.
“O trabalho dos biscateiros não é um trabalho fácil e é um trabalho de homenagem, também, de respeito aos mortos porque o tempo inteiro eles estão pedindo licença para trabalhar, para limpar o túmulo, para pintar, para escrever as letras”, considera.
“O que eu percebi é que o trabalho dos biscateiros só vem aumentando, repassando de tio para sobrinho, de pai para filho e agora também com um número maior de mulheres. Com relação às flores, aumentou também o trabalho das pessoas que fazem e vendem as flores, mas quanto aos doces, ele já está quase em extinção porque é um trabalho que é repassado de mãe para filha, só que envolve uma técnica, o ponto do doce e dá muito trabalho. Os jovens não têm hoje muita paciência para aprender o ponto, então, nós temos, hoje, na cidade umas 2 pessoas que fazem o doce”.
A tradição repassada de pais para filhos não se dá somente em relação às atividades econômicas que surgem a partir do rito, mas também a própria celebração da Iluminação dos Mortos de Curuçá. Sobretudo após a pandemia da Covid-19, a professora observa um crescimento da celebração.
“O que eu percebi dentro da minha pesquisa é que é uma tradição passada de pai para filho. Tem aquela pessoa da família que se reveza quando um familiar não pode ir, mas manda as velas pelo parente para iluminar o túmulo para o morto não ficar no escuro, como aconteceu durante a pandemia. Houve a iluminação, mas de forma restrita, apenas um familiar podia entrar para levar as velas e flores”.
Durante a realização da tese, a professora Valéria Fernanda Sales vivenciou uma experiência pessoal que ajudou a reforçar o simbolismo da tradição mantida pelas famílias curuçaenses. “Durante a pesquisa, eu passei pelo processo de aprender o que era iluminar o outro para me iluminar porque, em 2019, o meu pai faleceu. Então, eu tive que aprender todas essas relações de contratar alguém para arrumar o túmulo, ir lá e acender velas para o meu pai para eu poder chegar a essa luz que é confortar o seu coração”, lembra.
“A partir das minhas reflexões eu percebo que a vida do familiar curuçaense não acaba após a morte. Ele muda de contexto, mas ele continua sendo o parente. Todas as vezes que a família ilumina esse parente que partiu, ela se ilumina também. Existe, literalmente, uma auto iluminação”. (Reportagem originalmente publicada pelo DIÁRIO em novembro de 2022)