Cintia Magno
Está no imaginário de quem circula pelas ruas de Belém e até mesmo de outros municípios paraenses. Mesmo quem não conhece a história e a origem do Movimento Raio-que-o-parta, tem memória das casas em que as fachadas são decoradas por cacos de azulejos que formam variadas formas geométricas.
Resistindo ao ‘apagamento’ do tempo, as características do movimento modernista que fez grande sucesso no Pará entre as décadas de 40 e 60 ainda mexem com a memória afetiva de muita gente, moradores da cidade que encontraram nas redes sociais uma maneira de catalogar as casas ainda marcadas pelo estilo no Estado.
Provocando transformações em diferentes campos das artes, o movimento modernista que se firmou no Brasil na primeira metade do século XX também exerceu influência direta na arquitetura praticada na época. Especificamente no Estado do Pará, as tendências do movimento acabaram influenciando o surgimento de uma estética genuinamente paraense e que até hoje é vista pelas ruas de diferentes municípios, o movimento raio-que-o-parta.
Estudado nas universidades, o estilo foi aprofundado pelas amigas Gabrielle Arnour, Elis Almeida e Elisa Malcher quando elas ainda cursavam a faculdade de arquitetura e urbanismo na Universidade Federal do Pará (UFPA). Mais do que o conhecimento acerca da história do movimento, a percepção de que a beleza e a riqueza cultural do estilo vinham se apagando a partir de demolições ou de reformas das antigas casas de raio levou as três à iniciativa de catalogar o que ainda restava do estilo, dando origem à Rede Raio-que-o-parta.
“O modernismo surgiu com essa visão mais progressista e, na arquitetura, ele vem com essa quebra da leitura europeia que a gente tinha das edificações. E uma das características do modernismo na arquitetura eram os murais feitos em azulejos”, explica a arquiteta e urbanista Gabrielle Arnour.
“No Pará, o modernismo teve uma característica mais regional, como um todo, e os murais em azulejos também vieram para cá. Tiveram dois arquitetos que fizeram muitos murais aqui, que foi o Rui Meira e depois o sobrinho dele, o Alcyr Meira. Eles usavam os azulejos inteiros e já usavam também em cacos para fazer esses murais”.
Gabrielle conta que, com vontade de adentrar nesse estilo de decoração moderna e no movimento do modernismo, à época, as populações que não tinham tantos recursos para arcar com os custos para a contratação de engenheiros e arquitetos encontraram na compra dos azulejos quebrados, que eram mais baratos, uma forma de se inserir no movimento e montar esses murais na fachada das suas casas.
“Então, o movimento surge entre as décadas de 40 e 60 do século XX e dizem que, na época, quando esses azulejos eram trazidos para Belém pela estrada Belém-Brasília, a estrada era bem precária, então, eles acabavam quebrando no caminho e os revendedores, para não perder essa mercadoria, vendiam esses azulejos quebrados mais barato”, relaciona.
“Então, a população ia, comprava esse material e fazia a decoração moderna na sua casa. Existem alguns estudos que dizem que esse movimento foi tão expressivo na época que alguns revendedores passaram a quebrar de propósito os azulejos para vender os cacos”.
Nesse sentido, o movimento é caracterizado justamente por essas fachadas em que se vê, geralmente nas platibandas, com murais em cacos fazendo formas geométricas como raios, setas, bumerangues, formas da natureza, símbolos religiosos.
“A gente tem exemplares em todo o Pará. Tem em Belém, mas também já vimos em Santarém, Abaetetuba, Bragança, no Marajó é muito forte. Então, é um estilo que surgiu aqui na nossa região, tipicamente paraense, e que foi para além da capital”, considera Gabrielle.
“Então, a gente considera que o raio-que-o-parta vai muito além de um movimento arquitetônico. Foi um movimento cultural mesmo, de uma população que queria se inserir no modernismo e encontrou esse meio para estar nessa linguagem mais moderna da época”.
A força que o movimento teve no passado é evidenciada pela presença de casas raio-que-o-parta ainda existentes em diferentes bairros de Belém e em outros municípios, mesmo com todo o apagamento sofrido ao longo dos anos. Esse processo de descaracterização que muitas casas passaram foi o que chamou a atenção das amigas e as fez criar a rede colaborativa de mapeamento.
“Nos conhecemos na faculdade de arquitetura e urbanismo e quando a gente começou a debater sobre o raio-que-o-parta, em 2020, a gente começou a ter a visão maior de que o apagamento estava muito forte. Isso gerou uma inquietação na gente e a gente resolveu se juntar e foi mapeando. A gente ia caminhando por alguns bairros, fazendo um acervo fotográfico no intuito de guardar essas imagens”, conta a arquiteta Gabrielle Arnour.
A partir desse trabalho, que inicialmente mantinha um arquivo pessoal das amigas, surgiu a ideia de levar o mapeamento para o espaço público, através da internet. Foi quando elas criaram um perfil no Instagram e possibilitaram que outras pessoas pudessem enviar fotos e a localização de casas que ainda mantêm o estilo em Belém e outros municípios.
“A gente quer propagar mesmo a importância do movimento, disseminar o que ele é e tentar mitigar um pouco essas descaracterizações. O raio-que-o-parta não tem uma política pública de preservação específica para ele, então, a gente pensa que, propagando esse conhecimento, pode gerar um sentimento de pertencimento mesmo na população para tentar preservar mais esses raios”.
Outra idealizadora da rede, a também arquiteta e urbanista Elis Almeida lembra que, assim que criaram o perfil, a aceitação das pessoas foi muito grande. Pessoas que, assim como elas, reconhecem a importância do movimento e de resguardar os resquícios ainda existentes dessa época da história do Pará.
“A gente criou o Instagram e foi automático, várias pessoas vieram falar com a gente e isso também motivou a gente a dar andamento a esse projeto”, lembra, ao contar que hoje a rede também já começou a atuar na capacitação para a manutenção desses painéis de azulejos.
“Uma oportunidade que surgiu para a gente, a convite das Minervas, um projeto dentro da Enactus/UFPA que visa capacitar mulheres para trabalharem na construção civil, foi essa ideia de fazer uma retomada do raio-que-o-parta como o nosso patrimônio cultural e também trabalhar o tema da sustentabilidade porque a gente que quando os materiais são avariados na construção civil, eles são automaticamente descartados, então, pegar essa referência construtiva do raio-que-o-parta seria retomar, também, a pauta da sustentabilidade na construção civil”.
Preservação dos exemplares do movimento
O resgate da cultura raio-que-o-parta a partir da preservação dos exemplares do movimento é um interesse comum à artista visual Danielle Fonseca, que desde que nasceu mora em uma ‘casa de raio’ localizada no bairro do Umarizal, em Belém. Ela lembra que, ainda na década de 90, a presença de professores e estudiosos do movimento em sua residência fizeram perceber que o mural de azulejos cuidadosamente montado na fachada da casa tinha um significado além.
“Desde a década de 90, mais ou menos, alguns arquitetos acabam batendo aqui na porta para perguntar, às vezes bater foto. Mas eu sinto que, agora, está tendo um pouco mais de repercussão sobre o movimento. Não que não existia antes, mas eu acredito que essa visibilidade era um pouco menor pela própria experiência de receber os alunos aqui em casa”, considera, ao contar que conheceu o perfil da rede criado pelas amigas arquitetas pelo próprio Instagram.
“Eu tenho uma teoria de que talvez as redes sociais tenham ajudado porque eu sinto que a maioria é muito jovem, muito interessada em estética, em arte, eu acho que o raio tem esse atrativo também. Ele não é só um movimento de arquitetura, ele tem uma questão estética forte, de impregnar uma identidade na gente e dá para fazer muita coisa com ele, até em artes visuais. Talvez isso aproxime mais o público, a pessoa comum e isso é legal, eu acho. Essa difusão através da arte mesmo”.
Além da relação gerada pela própria moradia em uma casa de raio, Danielle também produziu um filme sobre o movimento, o ‘Um céu partido ao meio’, que integrou uma exposição em São Paulo que homenageou os 100 anos da Semana de Arte Moderna no Brasil. Curiosamente, a exposição acabou recebendo o nome de Raio-que-o-parta, ainda que tenha abrangido diferentes manifestações modernistas.
“O nome foi escolhido após o curador conhecer o movimento, ele me convidou para participar da exposição, da consultoria com ele porque ele precisava de um movimento que fosse da Amazônia para além dos estereótipos da terra. Ele tinha ouvido falar do raio-que-o-parta e tinha gostado e aí acabaram até mudando o nome e todo o design da exposição foi feito pensado no raio, apesar de só ter uma obra de raio, o meu filme. Então, eu acho que o movimento está alcançando uma proporção melhor”, considera.
“Os grupos sociais do raio são pessoas de camadas mais populares, mais pobres. Acho que a maioria das pessoas que eu entrevistei para o filme diziam que não tinham como manter isso, então, acho que seria importante ter um projeto de manutenção, talvez com uma ajuda pública de um possível tombamento, que é um sonho ainda. Aqui no bairro, na minha infância, tinham muitas casas de raio, umas três ou quatro aqui na frente, mas que foram substituídas. Não tem como manter o passado 100%, mas acho que preservar a história é o mínimo”.
COLABORATIVO
O perfil da Rede Raio que o parta (@rederaioqueoparta) tem como objetivo formar um acervo de imagens e localizações de casas que mantém o estilo arquitetônico paraense. Tal acervo é colaborativo, portanto, qualquer pessoa pode participar do resgate a essa memória arquitetônica enviando fotos de casas do estilo espalhadas pelo Estado.