Luiz Flávio
A falta de água tratada e potável para consumo é um problema crônico que afeta consideravelmente a qualidade de vida de quem mora nas ilhas no entorno de Belém. Nossa capital é cercada por mais de 50 ilhas onde residem milhares de famílias ribeirinhas. Nessas comunidades, água encanada é um luxo e um desafio a ser alcançado.
Mas o problema pode estar perto de ser solucionado através de uma ideia simples, barata e altamente sustentável: o filtro de caroço de açaí. A iniciativa partiu da engenheira de produção Ingrid Teles, diretora da startup Ver-O-Fruto, após ela avistar um senhor tomando banho num braço de rio na ilha do Combu, durante um Círio Fluvial.
“Naquele momento veio o questionamento: qual será a qualidade da água que essas pessoas tem aqui? Depois de algumas pesquisas, descobri que as ilhas, como Combu, Ilha das Onças e algumas outras, não têm acesso à rede de distribuição de água, e utilizam a água do rio para as suas atividades diárias. Aquilo me incomodou muito. Atrelado a isso, o grande volume de caroços residuais do açaí em nossa cidade também me causava o mesmo sentimento. Dessa maneira que veio a ideia: por que não usar um problema como solução do outro? E assim iniciei o projeto”, relembra Ingrid.
O protótipo começou a rodar, entre outubro e novembro do ano passado mas a instalação iniciou alguns meses antes, em março. “Por se tratar de algo novo, tivemos que recalcular a rota diversas vezes para poder chegar ao ponto que estamos hoje. Dessa maneira foi possível trabalhar em cima do que se tornaram nossos diferenciais”, comenta.
O mecanismo de funcionamento é relativamente simples: a água “in natura” vem do rio e passa pelo primeiro tanque e, em seguida, por um sistema de filtragem que armazena os caroços, onde há uma tecnologia aplicada aos caroços que faz a “retenção” das “sujidades” e impurezas, o tornando um meio filtrante.
Após essa etapa, há uma filtração mais minuciosa e depois a água está apta para ser utilizada. Pelas experiências já realizadas com o piloto, a expectativa é que a troca dos caroços ocorra após 1 ano de funcionamento do filtro. O processo dispensa o uso de produtos químicos e tem capacidade de ofertar até 20 litros de água potável por dia.
Hoje o projeto-piloto funciona na Ilha das Onças, localizada no município de Barcarena, distante 16 quilômetros de Belém e atende duas famílias. A região é rica em palmeiras de açaí, de onde saem os caroços da fruta, principal matéria-prima para o projeto. “A partir dessa validação, queremos iniciar os próximos passos para alcançar pelo menos 1.000 litros de produção diária e alcançar 100 famílias. Para isso faremos pequenas adaptações em nosso sistema”, coloca.
O projeto tem o custo de R$ 20 mil mas a engenheira ressalta que não se trata apenas da venda do sistema. “Por trás há todo um modelo de negócio que será trabalhado e que busca incentivar o potencial de cada comunidade, além do acompanhamento de nossa startup. Já estamos com advogados especialistas na área de patente e estamos dando esses passos sobre o melhor caminho a ser percorrido neste momento”.
A ideia do filtro nasceu no tempo de faculdade de Ingrid, mas veio se concretizar de maneira independente, fora de ambientes de faculdade. Todo o projeto inicial foi custeado através de editais, como o da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) e da ANGIE. A iniciativa também participou do “Young Water Solutions, iniciativa de aceleração de startups de fora do País.
Antes de instalar o filtro na sua residência, o produtor rural Celso de Jesus utilizava um outro sistema para obter água potável, através de coleta da água da chuva e acredita que o projeto de Ingrid veio para somar na qualidade de vida da família. “A água sai do rio e que passa pelo filtro sai cristalina no copo, sem qualquer resíduo, sem gosto ou odor e sem a utilização e qualquer produto químico. É uma transformação na vida de quem vive aqui do outro lado do rio e que sonha com o uso de água saudável e potável”, diz Celso, que é produtor de açaí e usa os caroços que resultam da produção do vinho para uso no filtro.
Ele espera que o sistema seja ampliado a possa atender a muito mais famílias não apenas nas comunidades da Ilha das Onças, mas em outras ilhas do entorno de Belém. Hoje o sistema implementado apenas na sua casa atende a uma segunda residência no local, que coleta água na sua casa 3 vezes por semana. “Estamos criando um legado muito importante com essa iniciativa, que nos estimula e nos impulsiona a manter a nossa floresta para preservar todos os seus recursos e tudo o que ela nos proporciona”, justifica.
Startup ajuda a manter programa funcionando
A engenheira de produção criou ainda a startup “Ver o fruto”, greentech (empresas de iniciativa verde que utilizam soluções tecnológicas não só para reduzir o impacto ambiental negativo das suas operações, como também para criar produtos e serviços que ajudem a preservar o planeta) que trabalha com caroço residual do açaí, transformando em novos produtos através da bioeconomia circular. “Acabamos de completar 2 anos de atividades. Hoje temos um sabonete facial feito com o caroço do açaí e estamos iniciando o serviço de acesso a água em ilhas da Amazônia com esse projeto do filtro”.
Ela conta que o sabonete facial foi o primeiro passo para criar solidez para a empresa e dessa maneira voltar para o propósito de acesso a água na Amazônia. “Através da venda do sabonete, que custa R$ 1,00 é que mantemos o projeto do filtro que levará água para comunidades que não podem arcar por esse acesso, que é um direito básico de todo o cidadão”, afirma.
Ingrid Teles acredita que a realização da COP30 em Belém é uma oportunidade única para os povos da Amazônia e que deixará um inegável legado para a região na área da bioeconomia e sustentabilidade. “Estamos acelerando algo que é um bem básico que todos devem ter acesso, que é a água, logo, ações que estão sendo tomadas agora focadas na conservação da floresta e no desenvolvimento sustentável, irão ressoar e ir cada vez mais longe e terão repercussão na conferência”.
“Hoje a startup possui grandes parceiros como o Parque de Ciência e Tecnologia (PCT) Guamá, considerado o berço de negócios tecnológicos da região e o Sebrae Pará, onde juntos estamos mostrando o potencial de negócios da Amazônia”, aponta.
A engenheira acredita ser possível que grandes empresas invistam no filtro ecológico. “Principalmente levando em consideração que temos o projeto a serviço da responsabilidade social, e existem muitas empresas interessadas em investir em negócios que tragam impactos positivos e que contribuam para o alcance de metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável-ODS firmados pela Organização das Nações Unidas (ONU)”, coloca.